O Serviço Nacional de Saúde é a melhor das conquistas de Abril! |
Quarta, 27 Junho 2012 | |||
O Serviço Nacional de Saúde é a melhor das conquistas de Abril. Em 30 anos o nosso país construiu de raiz uma rede de cuidados de saúde primários e hospitalares que no final dos anos 90 era classificada pela OMS como o 12º melhor serviço de saúde do mundo. Em pouco mais de 10 anos, desde o início da sua criação, Portugal passou de país atrasado, com índices de mortalidade infantil, peri-natal e materna ao nível dos mais subdesenvolvidos dos países Africanos, directamente para o topo do mundo. A esperança média de vida, a cada ano que passava, duplicava, triplicava ou quadriplicava. Foram construídas múltiplas unidades hospitalares e remodeladas as mais antigas, todas elas dotadas com equipamento de alta tecnologia. Desde cedo começámos a mandar os profissionais, sobretudo os médicos, ao estrangeiro para aprenderem novas técnicas, adquirirem novos conhecimentos e trabalharem com os melhores do planeta na sua área. O SNS é democracia, porque representa um dos componentes do Estado Social, que tirou Portugal do atraso e do retrocesso em que se vivia antes da revolução dos cravos. O SNS é democracia porque é uma vontade, um desejo, uma conquista popular. O SNS é democracia porque à sua componente assistencial universalista conquistada na rua aliou inovação, acessibilidade, proximidade e rigor. É por tudo isto que o SNS é a melhor das conquistas de Abril! Estado - o promotor do sector privado Não podemos reflectir sobre privatização da saúde, sem termos em mente um conceito fundamental: os gastos com a saúde aumentam sempre. E isto é inevitável, pois o progresso científico, o aparecimento de novos meios diagnósticos e novos medicamentos dotam a prática médica de cada vez mais recursos para responder às situações de doença. Na verdade não existe e nunca existiu nenhum sistema de saúde no mundo que desse lucro a um Estado. Nem nos Estados Unidos, onde não há um serviço público. Todos os anos o governo Americano gasta para cima de 3 biliões de dólares com a saúde, sem ter nenhum retorno. O sub-financiamento é a resposta contrária, negativa, antagónica à sustentabilização deste serviço: financiar cada vez menos um sector que gasta cada vez mais é empurrá-lo para a insustentabilidade cada vez mais próxima! Na verdade só há uma forma de controlar custos na saúde que é o investimento na prevenção. A prevenção a sério, aquela que intervém directamente na população, que busca soluções várias e complementares, implica ela também um investimento inicial, mas tem um retorno a médio e longo prazo que é sustentável. Em Portugal gastamos hoje apenas 5% do orçamento da saúde com a saúde pública, quando todos os relatórios europeus indicam que esse valor deve rondar os 20%. Com o país à beira do abismo social, entender o papel do sector privado da saúde e a relação de forças que existe entre Estado (entendido como organizador dos investimentos públicos) e estes parceiros privados é fundamental. É nos últimos 10 anos que cresce o sector privado da saúde, aparecem as grandes unidades hospitalares dos grandes grupos económicos. As políticas públicas de saúde que são políticas de desinvestimento estão na causa deste crescimento. O sub-financiamento crónico do SNS, que se tem acentuado na última década, é o responsável pelo crescimento do volume de negócios dos grupos privados da saúde. As listas de espera, a falta de profissionais, o fecho de unidades de saúde públicas são os responsáveis pelo aumento das consultas e das cirurgias nas unidades privadas – só no ano 2009, os hospitais da CUF registam aumentos da ordem dos 10%. O projecto da burguesia e dos seus governos para a saúde é claro – esvaziamento do serviço público e incentivo à iniciativa privada. A sua estratégia é dissimulada – sub-financiamento das estruturas públicas e dinamização de um discurso ideológico baseado na “insustentabilidade” e no axioma utilizador – pagador. O sucesso deste projecto está à vista – listas de espera que não se resolvem, crescimento exponencial das unidades do sector privado, entrega do sector público ao privado através das parcerias público-privadas. O resultado desta política é previsível – um sistema à americana, em que os hospitais públicos são meramente assistencialistas e depauperados de recursos materiais e humanos e o sector privado, de acesso condicionado a quem pode pagá-lo, dominante e rentável. O crescimento do sector privado e a clientelização da saúde Se nos últimos 30 anos a prática da medicina privada era dominada pelos consultórios privados, detidos pelos clínicos que exerciam o centro da sua actividade no SNS, o quadro tem mudado de figura nesta última década. Há algumas práticas nas unidades hospitalares privadas que nos revelam curiosidades implícitas sobre o mundo da saúde privada. No Hospital da Luz, detido pelo grupo BES - Espirito Santo Saúde, não há doentes nem há utentes, há clientes. A administração daquela unidade prefere o adjectivo "clientela" para se referir aos seus utentes. Na verdade o termo resume tudo: o doente-cliente compra os serviços do Hospital da Luz, escolhe os métodos de diagnostico e adquire os tratamentos. Não existe nenhuma política da casa, nenhum protocolo que se sobreponha à vontade do doente-cliente: se o doente-cliente quiser fazer uma TAC ao corpo todo, fá-lo-á, com o apoio da administração, mesmo que não tenha nenhuma indicação e que o exame seja danoso para a sua saúde. E aqui não entra nenhum critério clínico. Muitos podem afirmar que "saúde a mais não faz mal a ninguém" e que realizar um número disparatado de exames à escolha do doente-cliente não o prejudica. Mas a verdade é que, para além desta prática não traduzir qualquer ganho na saúde da população, ele tem implícita um conceito de saúde errado que ofusca o mais importante e que é a aposta na promoção da saúde e na prevenção primária - repetir exaustivamente exames durante o ano não previne o aparecimento de doenças. E é nesta área fulcral da saúde das populações que o privado não tem interesse em investir pois não tem rentabilidade imediata. Depois são hoje conhecidos os efeitos do excesso da medicina nas nossas vidas e que alguns autores denominaram por "iatrogénese social" - isto é, repetir exames inúteis pode levar os indivíduos a submeterem-se a práticas com algum risco desnecessário para a sua saúde. A par disso, não é de admirar que as unidades privadas disponham de um aparato de marketing e de publicidade que induzam este tipo de comportamentos por parte do seu doente-cliente. Nas clínicas da CUF, por exemplo, é usual oferecerem-se "packs" de check-up a toda a família - por um preço mais acessível o indivíduo pode fazer uma série de exames, na verdade desnecessários, em troca da promessa de uma saúde de ferro. A medicina privada cria necessidades falsas na população, incentivando o seu consumo acriterioso e dispendendo recursos valiosos, que poderiam ser aplicados na redução das listas de espera no SNS. A gestão do SNS - porta aberta à privatização Mas não foi só através do aparecimento e crescimento das unidades privadas que a fúria privatizadora neoliberal atacou. Pelo contrário, foi sobretudo pelo que fez no próprio SNS que a burguesia iniciou este processo de desmantelamento progressivo do serviço público. No nosso país, a partir dos anos 90, tentou-se reduzir o prejuízo com a saúde, introduzindo gestões profissionais nos nossos hospitais, primeiro os S.A. e depois os E.P.E. Estas gestões passaram a depender de um financiamento com base nos actos clínicos que prestavam, ou seja, na sua produção. Quanto mais produzissem e mais eficazmente, melhor era o financiamento. Uma excelente gestão podia até chegar ao ponto de acumular alguma mais-valia no final de cada ano. Mas quem pensou o financiamento dos hospitais desta maneira não pensou numa característica fundamental: é que são hospitais e não empresas e têm particularidades que acabaram por colocar em causa a sustentabilidade deste tipo de financiamento. É com o aparecimento dos hospitais S.A. que surge o conceito de direito privado do trabalho nos serviços de saúde públicos. Estas unidades de saúde passam assim a poder contratar médicos, enfermeiros e auxiliares a prazo, negando-lhes, desta forma, o acesso à carreira. E é esta a realidade no terreno: os quadros de nomeação definitiva estão encerrados – as carreiras dos profissionais de saúde estão comprometidas e a dependência de um contracto a termo instala-se. Muitas administrações passaram a jogar com os valores oferecidos pelos contractos para fixar médicos ou os dispensarem. E com isto surgiu uma nova preversidade: muitos médicos foram aliciados por outros hospitais, com promessas de bons contractos, deixando o seu local de formação e actividade. Muitas equipas médicas que funcionavam em pleno dissolveram-se e com o aparecimento das PPP's a situação piorou. Com o surgimento do novo hospital de Cascais, a administração privada daquele hospital contractou uma boa parte do serviço de obstetrícia-ginecologia do Hospital Garcia de Orta, desmantelando completamente a sua equipa. Aquele que era reconhecido como um dos melhores serviços daquela área do país foi destruído com a transferência dos "pesos-pesados" para Cascais, com contractos muito bem pagos. A autonomia nas contractações criou uma desorganização total na oferta de serviços: os médicos que são escolhidos são, normalmente, técnicos altamente diferenciados colocados em hospitais centrais e os hospitais que contractaram são hospitais de periferia, cuja oferta tem que ser generalista. Ora com estas transferências, os técnicos com diferenciação vão passar a realizar actividade generalista na periferia e os hospitais centrais, que assumem os cuidados mais diferenciados, ficam sem os puder oferecer porque os seus técnicos foram embora. Com estas transferências ficam pelo caminho materiais e doentes acumulados nos hospitais centrais que perderam a qualidade dos cuidados que necessitam. O sistema torna-se disfuncional e em muitos casos redundante. As gestões autónomas apresentam ainda outra falha significativa de funcionamento: a contratação de serviços a prestadores privados. Apertados com o financiamento para os pagamentos de salários, os hospitais estão limitados na oferta de bónus ou prémios aos seus profissionais. Estes, mal pagos, trabalham em tempo parcial no SNS e complementam o seu ordenado no sector privado. Ora como não há recursos humanos suficientes para realizar todos os exames complementares de diagnóstico no hospital, a administração contracta os serviços dos privados que, são prestados pelos mesmos profissionais que trabalham para esse hospital. Se a esses mesmos profissionais o hospital oferece-se o complemento do ordenado que ganham na privada para fazerem esses exames na estrutura do hospital, este pouparia no mínimo o preço da deslocação do doente e o uso do material do privado. Muitas são ainda as situações em que isto existe - o Estado gasta mais dinheiro com as convenções do que gastaria se aumentasse os vencimentos dos seus profissionais para rentabilizarem as estruturas públicas - no fundo quem lucra com isto é o convencionado privado. PPP's - a primeira fase da privatização assumida! É com o aparecimento dos hospitais construídos em parceria público-privada que o sector privado entra em força no serviço público de saúde. Aliás, não só os grandes grupos económicos na área da saúde passam a gerir hospitais públicos como o Estado passa a endividar-se por períodos superiores a 3 décadas. As PPP's funcionam por financiamento directo do Estado ao consórcio privado, por acto prestado e por doente visto, com base num acordo prévio realizado entre ambas as partes. Ao consórcio privado é atribuída uma renda fixa e a responsabilidade de realizar as actividades inscritas no contracto. E mesmo que as necessidades da população mudem e sejam precisos mais cuidados, o prestador vai fazer unicamente o que estipulou com o Estado, pois é para isso que lhe pagam. As experiências recentes do Amadora-Sintra, Braga e Cascais são ilustrativas do quão mau é um sistema de gestão que os Ingleses já rejeitaram liminarmente no passado e que a própria Troika criticou: multas ao prestador por incumprimento, não pagamento de horas extra aos profissionais, transferências indevidas de doentes críticos para outros hospitais, burla ao Estado por pagamento de actos que nunca chegaram a ser realizados, contractos estabelecidos com convencionados do mesmo grupo económico do que o grupo que gere a PPP. Mesmo a recente polémica sobre o encerramento da Maternidade Alfredo da Costa não escapa à influença nefasta que as PPP's vieram introduzir no nosso SNS. O elevado movimento assistencial da MAC coloca em risco o financiamento estadual ao grupo BES saúde que gere o novo Hospital de Loures. A renda anual que é dada àquela entidade privada para gerir o novo hospital está, contratualmente, dependente do serviço assistencial previamente definido. Ou seja, se os 1800 partos anuais que o Estado contractou ao Hospital de Loures não forem atingidos, o grupo BES perde uma parte pré-definida na renda. Ora é esta parte da renda que a Engª Isabel Vaz não quer perder de forma nenhum e é aqui que o fecho da MAC contribui para os seus bolsos. Uma política de esquerda não pode ficar indiferente a este processo de mercantilização. Só há uma forma justa de fornecer cuidados de saúde à população, garantindo equidade no seu acesso. E essa forma designa-se Serviço Nacional de Saúde. Só um SNS com mais investimento, com mais recursos pode ser competitivo com o domínio da saúde privada. E só um SNS equipado e organizado pode garantir algo que os grupos privados nunca faram: democracia no acesso à saúde. Bruno Maia, médico (pré-publicação d' A Comuna nr 28)
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A Comuna 33 e 34
A Comuna 34 (II semestre 2015) "Luta social e crise política no Brasil" | Editorial | ISSUU | PDF
A Comuna 33 (I semestre 2015) "Feminismo em Ação" | ISSUU | PDF | Revistas anteriores
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