Privatiza, filho, privatiza Versão para impressão
Quarta, 08 Agosto 2012

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Os consumidores de energia receberam muito recentemente da EDP vendida à China (empresas chinesas são chinesas…) uma circular informando que as tarifas reguladas irão “ser extintas, ficando a venda submetida ao regime de preços livres”  e  aos clientes que não escolherem outro fornecedor a ERSE fixará tarifas de venda com um “factor de agravamento que visa induzir a adesão gradual ao mercado”!

A razão aduzida é simples e elegante: trata-se de permitir que o consumidor possa escolher entre as várias possibilidades oferecidas pela concorrência recém-chegada ao sector – Galp, EGL, Endesa, Galp Power, Iberdrola, Unión Fenosa.

Ou seja, a EDP chinesa, com uma renda garantida pelo Estado português, vai empurrar os seus clientes para os braços da concorrência aumentando os seus próprios preços. Se alguém duvidava do espírito solidário e da generosidade intrínseca do funcionamento do mercado capitalo-comunista, com o apoio exigente e esclarecido do Estado, chegou o momento de mudar de opinião.

E é decerto um auspicioso encontro entre os interesses da democracia global do mercado e as necessidades internas de salvação nacional. É, de facto, o resultado da política de privatizações imposta pela troika, destinada a garantir o empenhamento do Estado português, não em assegurar tarifas baixas ao consumo, o que depreciaria o produto, mas na distribuição dos sacrifícios impostos ao povo português: o mercado funcionando sem os condicionalismos da propriedade estatal, mesmo e principalmente nos sectores de maior rentabilidade e de significado estratégico fundamental.

Temos, pois, que sob o impulso da EDP e a inspiração das entidades reguladoras, o mercado da energia se democratiza, se abre a novos distribuidores/produtores, e a concorrência capitalista característica do mercado global se consolida numa feérica política de cartel. Todos diferentes mas todos iguais na forma como sugam os já muito parcos níqueis do consumidor.

As privatizações dos sectores estratégicos da economia que, pelo próprio progresso do capitalismo, a burguesia, racionalmente aliás, atribuíra ao controlo dos Estados-nação, no mundo actual globalizado são a evidência, já sem qualquer manto diáfano, da anarquia e da irracionalidade absolutas que constituem a essência da produção capitalista.

Uma espécie de transposição para a modernidade, da propriedade feudal: controlo, domínio, comando com suporte na ameaça ou concretização da violência directa sobre o conjunto da sociedade com total desrespeito pelas próprias normas que teriam como objecto organizar e harmonizar o esbulho e a opressão. Anarquia, caos, espoliação sem peias.

Depois do 25 de Novembro de 1975, a direita e os liberais que auto se intitulavam social-democratas contando como apoio sempre envergonhado, não sei porquê, dos social-democratas que se auto intitulavam socialistas democráticos, traçaram como objectivo central a reprivatização de todo o sector nacionalizado na primavera de 1975 e a privatização de tudo o que mexesse, desse lucro ou significasse posição dominante na economia, ou seja os sectores estratégicos.

Claro que isso não poderia ser feito do pé para a mão e ia exigir muita tenacidade, muita falta de vergonha e enorme sentido de manigância, total desrespeito pela democracia e pela ordem constitucional, assim como grande capacidade de estabelecimento e organização das redes mafiosas que ainda hoje prosperam e se consolidam embora em termos diferentes.Se Cavaco vier a ter uma estátua estou certo que ela lhe será erigida pelo papel central que teve na inspiração, orientação e sustentação do grupo fraudulento a que veio a chamar-se “os cavaquistas”.

Mas não deveremos esquecer o papel determinante de gazua que teve o governo do Bloco Central de Mário Soares e Mota Pinto. De facto, a reprivatização, ainda ao arrepio da Constituição – que só com a revisão de 1984 deixou de impor a cota de 51% na posse do Estado - do sector nacionalizado, nomeadamente os sectores básicos da economia, foi sustentada numa proposta do governo do Bloco Central que argumentava, nomeadamente, ser “um contra-senso a absolutização da irreversibilidade das nacionalizações” pois “não permitiria a introdução de novas tecnologias ou a alienação de alguns equipamentos”!...

Não se trata aqui apenas de memória histórica. Trata-se de sublinhar, nos dias de hoje, que a grande ofensiva da direita desde então só foi possível pela neutralização da luta dos trabalhadores, em defesa das conquistas de Abril, pela íntima e sistemática colaboração entre os liberais (ditos social-democratas) e os social-democratas (ditos socialistas democráticos).

Nesses tempos negros que prepararam e asfaltaram (literalmente, com as auto-estradas e a liquidação da rede ferroviária para abrir o negócio às rodoviárias privadas, por Cavaco primeiro-ministro) os caminhos para a troika arrasando a capacidade produtiva do país, desde a metalomecânica pesada, os grandes estaleiros, a siderurgia, a química, as pescas e a agricultura, adulteraram o sistema público de ensino e de saúde, o que esteve, fundamentalmente, em jogo foi a privatização de toda a economia como objectivo central.

Os “grandes capitães da indústria” como eram chamados, trocaram a produção e a economia pela banca, os seguros e a especulação financeira, não sem garantirem pagamentos/indemnizações que eles próprios determinavam por avaliações especulativas perante um governo complacente e rendido, e onde a violação das normas legais era a regra (Ver “Cavaco, homem de fé, homem de mão” Mário Tomé, in A Comuna nr. 10).

É notória a aceleração das crises do capitalismo decorrente da cada vez maior debilidade dos mercados na economia que se traduz em crises de sobreprodução e na necessidade de destruição de forças produtivas sem deixar cair a taxa de lucro. Isso exige a transferência do centro da actividade dos mercados para o monstruoso crescimento da especulação financeira e obriga objectivamente os comandos políticos da burguesia a abrir os últimos sectores ainda sob controlo estatal: os que ainda devem garantir o controlo estratégico e asseguram a prestação do serviço público – o Estado social - compensatório da pressão permanente para a concorrência assente na baixa dos salários.

A privatização da economia tem sido preparada e levada a cabo das mais diversas formas: pela liquidação de empresas estatais abrindo o espaço para o surgimento de empresas privadas ocupando o espaço deixado livre (a liquidação da rede ferroviária e rodoviária); a venda das empresas a preços de saldo ou sem a devida compensação pelos investimentos que as tornaram rentáveis e apetecíveis; pela garantia de rendas usurárias; pelo esquema das PPP; etc.

Em todas elas a constante é a transferência directa dos rendimentos do trabalho para o capital através do Estado que seria suposto assegurar a equidade dos rendimentos, enquanto a transformação social não impuser a mudança da propriedade dos meios de produção para as mãos dos produtores.

Os últimos passos para a privatização total do Estado - o que está já em curso com as políticas com que a troika trata de salvar e acrescentar os rendimentos da finança como resposta à crise que ela própria provocou – é a privatização dos monopólios naturais como a água e, não percamos a esperança, do próprio ar.

Na Bolívia, em Bogotá – antes de Evo Morales - o povo costumava dizer que a água corria para cima. De facto, nas zonas altas onde vive a burguesia nunca faltava a água. E, nas zonas baixas onde vive o povo, faltava sistematicamente a água, e aquele era obrigado a comprar água engarrafada às empresas privadas que controlavam a rede de distribuição.

O neoliberalismo, proclamando o mercado como auto-regulado e garante da democracia, proclamando a desnecessidade do Estado, impôs-lhe no entanto que garantisse a repressão e as privatizações.

Na fase actual, o liberalismo exige ao Estado que prossiga com essas funções e atribui-lhe outra, mesmo que à custa da integridade da ideologia neoliberal: a socialização dos prejuízos dos bancos, a garantia dos resultados da especulação financeira compensando as broncas da jogatana sem limites. Ou seja que as slot machines garantam, sempre, o jackpot .

É com esta situação que nos defrontamos. É esta situação que o povo português e os povos em geral, têm que reverter. Mas a história já nos balizou o caminho e dá-nos indícios preciosos: não há caminho sem combate frontal contra o capital. Nesse combate os “socialistas democráticos” terão que se definir nomeadamente quanto à política “privatista” da troika.

As eleições na Grécia mostram que a luta dura e radical contra os tecnocratas do esbulho capitalista vale a pena. É só escolher o lado.

Mário Tomé

 

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