Democracia, democraticidade e a usurpação da reivindicação |
Quarta, 22 Agosto 2012 | |||
A reivindicação democrática no hemisfério norte-ocidental (com fenómenos evidentes também na América do Sul e norte de África) é uma ambição comum às perspectivas progressistas e emancipatórias que se tem vindo a destacar cada vez com maior relevância. A sua proposição como reivindicação máxima mais recente surgiu também como reacção a várias tendências generalizadas nos regimes capitalistas de guerra e exploração, mais concretamente com as mais recentes guerras contra a droga e contra o terrorismo promovidas pelos EUA e de âmbito internacional, e aos episódios recorrentes de intervenções económicas externas não-escrutinadas e aumento da repressão policial à contestação contra a degradação generalizada nas condições de vida dos países recentemente intervencionados pela troika. O movimento altermundialista sempre reivindicou-se da democracia, dando particular relevância à democracia económica e à justiça social como bandeiras. A premência desta reivindicação trouxe no entanto consigo fenómenos extremos de extrapolação "democrática" que, pela sua aplicação, se constituíram como um obstáculo difícil de ultrapassar na organização, consolidação e coerência dos movimentos de resistência ao retrocesso histórico levado a cabo pelas principais instituições imperialistas da actualidade: FMI, OMC, OCDE e CE. A exigência da democraticidade absoluta trouxe consigo também um carácter de obstrução concreta à realização de uma maior democracia, mais justa e igualitária. A democraticidade absoluta é uma noção totalmente deturpada de democracia, uma usurpação do espírito democrático que o vira contra si mesmo e serve a reacção ao assumir a possibilidade de uma democracia perfeita e completa, imutável, em que desaparecerão as forças em disputa pela hegemonia na sociedade, originando uma situação concretizada e acabada. A exigência da democraticidade absoluta em todos os processos tem representado 'de facto' um dos maiores obstáculos não só à organização de novos movimentos como afectado mesmo organizações pré-existentes, ameaçando o seu futuro. Em momentos de refluxo na capacidade de influir decisivamente nas decisões políticas esta deturpação, aliada à despolitização generalizada da sociedade e consequentemente também dos activistas, tem sido um importante esvaziador não só da capacidade de reacção como mesmo da criação de conteúdo político. Associado a esta tendência surge um discurso proveniente não somente mas também assente nas "teorias da conspiração", na descoberta de soluções técnicas para os problemas políticos globais, na rejeição das estruturas políticas pré-existentes, na rejeição de sistemas de representatividade e alheamento em relação à luta de classes, excepto no que se refere exclusivamente à identificação de milionários financeiros e à abstração perniciosa designada por "classe" política (vista de modo uniforme e rejeitada). A insistência na reflexão contínua e não vinculativa tem-se na generalidade revelado inconsequente a nível de capacidade reactiva e reivindicativa/programática. Também ela é um resultado indirecto da tendência ultra-democratizante. A decomposição etimológica da palavra Democracia origina o seu significado: o poder do povo, a liderança pelo povo. O povo, desde a Grécia, sempre foi identificado por oposição à elite, que governava em sistemas plutocratas de forma autocrática. A democracia foi construída pelo o derrube popular da plutocracia gerida pelos oligarcas. A oposição entre os sistemas baseava-se na posse do poder: povo vs oligarquia. A oposição actual e a principal contradição não se deve constituir portanto entre democracia e autocracia mas entre democracia e plutocracia. Embora vejamos em todos os momentos a plutocracia a exigir a autocracia (sendo esta tendência crescente no momento actual na Europa), esta noção distorcida de democracia adoptada por muitos activistas de várias tendências de esquerda tem-se fixado não tanto na crítica do regime político e a sua liderança mas dando um enfoque absolutamente desmesurado na reivindicação de uma democracia verdadeira mas abstracta, dando azo e vazão a desconfianças constantes e à obstrução da coerência. A aplicação desta teoria abstracta à organização e acção política tem tornando implícitas as dificuldades de organização, por vezes surgindo mesmo a rejeição da organização e simultaneamente (associado à rejeição da representatividade) da própria perspectiva de poder. A principal perspectiva que transparece e se vem materializando é de que à soma das vontades individuais equivale a vontade colectiva. Esta perspectiva sai directamente dos livros de economia da burguesia, e chama-se liberalismo. É a mesma perspectiva que defende a liberalização do Trabalho, dos serviços, de toda a Economia. O liberalismo defende que da procura individual da satisfação das necessidades por cada um de todos os indivíduos da sociedade resulta a satisfação da necessidades da sociedade. Ignora em absoluto as condições pré-existentes, as condições materiais ou a existência de classes sociais, de relações de forças sociais e outros factores dentro das sociedades. Defende a não-organização dos trabalhadores, defende a não-organização de sistemas universais colectivos que garantam uma distribuição da renda, defende o empreendedorismo individual como virtude máxima dentro de uma sociedade. Rejeita a organização, defende a destruição das organizações e dos sistemas colectivos, rejeita a representatividade, rejeita a política e defende as soluções técnicas para os problemas globais. Estas ideias permearam a sociedade em geral pela repetição à náusea das suas virtudes. Permearam também as organizações e as pessoas. A teoria liberal é no entanto defendida exactamente pela classe social dominante que se organiza absolutamente, que domina e controla as maiores organizações que já existiam e que simultaneamente tira partido da desorganização e despolitização das classes que explora, promovendo a destruição das organizações que se lhe opõem e evitando a construção de novas. Os oligarcas arvoram-se até defensores da democracia, louvando as virtudes e maturidade das democracias ocidentais. Utilizarão o argumento democrático apenas enquanto necessitarem da sua cobertura para poderem realizar a reconfiguração da sociedade actualmente em curso. Hoje já é visível em muitos países do sul da Europa a queda da máscara democrática. No entanto o poder da classe dominante beneficiou absolutamente dos processos democráticos em Portugal e em Espanha: assustou o povo a votar nos partidos "certos" (os mesmos há décadas), e afastou os revoltados das urnas, que terão apostado massivamente na abstenção como forma de protesto não contra as burguesias nacionais mas contra o sistema em geral, acabando obviamente por entregar de bandeja o poder à direita que representa as burguesias com ainda mais fervor do que o centro-"esquerda" tombado representava. A usurpação da democracia concluiu-se portanto através de um processo democrático em que uma ampla fatia da população traiu-se a si mesma, reforçando o carácter anti-democrático do regime que acusava de falta de democracia. O que é necessário é exactamente utilizar o regime democrático para inverter o regime liderado pelas burguesias. A desconfiança sobre o pensamento organizado e a acção colectiva é outra das faces desta democraticidade absoluta. É defendida por três conjuntos de pessoas: aqueles que desconfiam de qualquer forma de organização e que portanto vêem em qualquer forma organizada de reflectir uma ameaça à sua individualidade; aqueles incapazes de se organizar para estruturar reflexão e propôr acção (normalmente associado aos processos ultra-democráticos de organização que impedem síntese e acção) e aqueles que, apesar de organizados e de produzirem reflexão conjunta, por não conseguirem disputar ou vencer com a sua reflexão a hegemonia do pensamento nos seus colectivos ou organizações em que participem, rejeitam a posteriori o pensamento organizado pretendendo consequentemente que quem possui a hegemonia não tem legitimidade para tê-la pois tê-la-á obtido através do pensamento organizado e consequentemente ilegítimo. Este último caso é a negação da democracia, do materialismo dialéctico e da organização para a resistência e para a disputa do poder. Uma última característica particularmente relevante desta deturpação da ideia democrática que origina a democraticidade absoluta é que ela cria resignação. A resignação será a consequência de escolher como objectivo uma ideia abstracta e inconcretizável. Porque ao pôr num programa como primeiro e inultrapassável ponto uma ideia inconcretizável, nunca se avançará para qualquer ponto seguinte. Menos ainda quando a democraticidade absoluta é o ponto único. O liberalismo, apoiando-se na perspectiva autoderrotada da democraticidade absoluta e através das derrotas sucessivas que vem impondo à democracia e à resistência pretende neste momento criar um consenso supra-histórico de resignação e submissão, repetindo à náusea através de todos os seus meios de propaganda as palavras de ordem: "é inevitável"; "não há outro caminho"; "a culpa é nossa"; "vivemos acima das nossas possibilidades". A resignação é o "espírito da época" reaccionário que procura reproduzir-se na perspectiva de garantir uma hegemonia de submissão e de derrota. Encontra eco não só na população em geral mas muitas vezes numa parte da esquerda que padece de uma análise economicista, historicista e simplista da luta social, que se escuda na resignação e nas soluções anteriores e já experimentadas, ignorando que os factores subjectivos podem não só ser influenciados como criados, afectando os factores objectivos e as relações de forças. O polemismo e a especulação intelectual constantes são formas de promoção desta resignação, remetendo muitas vezes possíveis actores activos da luta social em resignados resignadores, ortodoxos históricos presos a eventos e fórmulas passadas, promotores de todas as desconfianças e fraquezas próprias e dos outros, por submissos a uma análise estritamente economicista do materialismo dialéctico que os remete à impotência e à agência involuntária da reacção. A democracia deve ser defendida no concreto e não no abstracto. A democracia é o poder do povo. Nunca existiu na sua plenitude porque é apenas uma ideia, cuja prática sempre demonstrou precisar de reequilíbrios constantes. É um jogo de forças que se medirão enquanto houver divisões dentro da sociedade, mas devemos aspirar a que, no mínimo, seja um jogo justo. A democracia é algo a aspirar mas não é um fim em si, apenas um meio para chegar a um fim maior: a emancipação, a possibilidade da libertação do Homem para uma vida rica e plena. Como se concretiza a democracia no abstracto, o que deve ser reivindicado neste momento? A base para uma democracia verdadeira são direitos verdadeiros. Os direitos ao igual tratamento, à dignidade, à saúde, à educação, a uma alimentação saudável, à água, ao trabalho com direitos, aos transportes, à protecção em momentos de fragilidade, ao respeito de todos. E para todas as opressões que existem, quer de género, de etnia, orientação sexual e principalmente de condição económica a única resposta democrática que existe não é abstracta. É concreta: Direitos. São a única maneira de garantir o mais próximo que conhecemos de uma democracia. Talvez não seja interpretada por todos como uma democracia verdadeira, mas é uma democracia bem mais verdadeira que o liberalismo que criou e que regozija-se com as teorias da democraticidade absoluta e, pela ultra-individualização, mata qualquer noção de diálogo, compromisso, disputa de ideias, reflexão ou acção conjunta. A defesa de direitos pode e deve ser uma fase intermédia para se chegar a uma outra sociedade. Uma sociedade em que estes direitos não tenham de ser defendidos a cada momento, mas em que sejam a regra da convivência humana, em que não haja necessidade de sancionamento por não haver incentivos a desrespeitar os direitos porque os mesmos sejam inalienáveis e condicionais apenas à existência enquanto pessoa. Talvez essa seja uma democracia verdadeira. É seguramente mais verdadeira que a actual e devemos aspirar a que seja concretizada por oposição ao liberalismo.
João Camargo, publicado também em Combate.info
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