Idosas, para que vos queremos |
Segunda, 29 Outubro 2012 | |||
Segundo a lógica patriarcal, as mulheres ao passarem de uma certa idade já não têm utilidade alguma, são um estorvo, como uma caneca sem fundo ou uma caneta sem tinta. Ora vejamos, no sistema patriarcal as mulheres, tal como os objectos, têm uma utilidade, servem para serem mães e educar os filhos, serem esposas dedicadas, prontas para satisfazer os desejos dos maridos e cuidar do lar para que esteja sempre tudo limpo, arrumado, organizado, comida na mesa, barrigas cheias. São as gestoras das casas e as assistentes da família em serviço 24 horas por dia, 7 dias por semana. Com a adultez dos filhos chegam os cuidados aos netos, cuidado esse que vai muito para além da idade da reforma legal de outros trabalhos respeitados e remunerados. Chega então a velhice, as artrites, as dores, as dificuldades locomotoras e o corpo cansado de tantas horas laborais sem dias de descanso padece, tal como padece muitas vezes a mente, em resultado de tantos anos ao serviço sem reconhecimento e sem visibilidade. Doentes, idosas, cansadas chegam muitas vezes as doenças como a depressão e a tristeza crónica, o desespero e a desolação. Já não conseguem fazer o que faziam antes e já não têm idade nem força para recomeçar. É nesta altura que os outros se afastam e a solidão ganha terreno mordendo-as a cada dia mais e deixando feridas que teimam em não sarar. Já não conseguem cuidar dos netos e por isso já não as visitam os filhos. Os maridos quando ainda estão vivos já não podem contar com elas para nada. Cuidaram de outros mas não têm quem cuide delas agora quando a capacidade de cuidar de si mesmas se desvanece dia a dia. São as mulheres idosas, já sem serventia. São as mulheres que fizeram do doméstico o seu mundo e o seu horizonte, que dedicaram a força, a juventude e a energia a um universo restrito de pessoas que muitas vezes não souberam reconhecer os sonhos e as ideias de que tiveram de abdicar. Clausura em trabalho e depois clausura em solidão. É o papel que o patriarcado estipulou para as mulheres: enquanto belas e jovens, fortes e activas, enérgicas cantam em casa enquanto limpam, lavam e fazem banquetes, petiscos e doces para a familia, enquanto cuidam de marido, filhos, netos e bisnetos, depois, quando já nem força para cantar têm,que estorvo! Não podemos esquecer, em tempos de crise, austeridade, em tempos de luta pela igualdade de género e direitos sociais, destas mulheres que viveram toda uma vida sem poder sequer sonhar com a igualdade de género, que não puderam estudar, que não ousaram sonhar em invadir praças, em fazer desporto, em construir uma carreira, em intervir politica e civicamente. Estas mulheres que foram empurradas para o universo doméstico, para o silêncio, para a obediência por uma visão patriarcal, conservadora, fechada e de extrema opressão de género. Não nos podemos esquecer delas quando cortam as pensões miseráveis que recebem por nunca terem trabalhado fora de casa e não têm dinheiro para comprar medicamentos e para se alimentar devidamente. Não nos podemos esquecer delas quando o sistema nacional de saúde pública é devastado, a comparticipação de medicamentos cai, os lares de idosos da segurança social se tornam em vias de extinção. Não nos podemos esquecer das operárias que para além de todo o trabalho doméstico trabalharam horas a fio, jornada após jornada com oficios por vezes mais duros e recebendo um salário muito abaixo dos operários homens. Operárias que hoje sofrem as mazelas físicas desta violência laboral e social. Estamos na altura de exigir também agora dignidade para estas mulheres na sua velhice, direito a lares sociais para tod@s @s idos@s com condições dignas de higiene, segurança, cuidados médicos, ginástica, acompanhamento psicológico, espaços de lazer e partilha que alimentem a mente, revitalizem o corpo e afastem a solidão e o desespero. Pensões dignas que garantam a subsistência e afastem a pobreza e a miséria em que vivem muit@s idos@s. Reivindicamos o direito aos cuidados médicos e às terapeuticas adequadas porque a saúde é um direito inaleanável mas também espaços de debate, partilha e reflexão, lazer, porque a alegria e o bem-estar psiquico são também direitos fundamentais. Porque até à morte ninguém perde a sua humanidade (não a perdendo também depois desta) não podemos fechar os olhos a uma parte da sociedade apenas pelo facto de já não serem produtiv@s. Dar voz ,a quem não tem, parte da consciência de esquerda. Não podemos, por isso, calar esta velhice e as histórias de vida que a acompanham num país onde ser velh@ é como que estar num corredor da morte à espera da execução. Não está tudo acabado quando os joelhos cedem, são as mesmas pessoas de outrora, com histórias e experiências de vida, amores e revoltas, capazes de amar, de contribuir para a sociedade civil, de serem felizes, de intervir, de criar, de construir. É este sistema que @s consome, destroi e atira para a condenação e é dever da esquerda resgatar os direitos destas pessoas (de todos nós se vivermos até lá), dando-lhes/nos dignidade e contribuindo para a promoção da vida digna desde o nascimento até à morte. Dignidade essa que não pode deixar de contemplar a igualdade de género, os direitos dos imigrantes aos lares sociais mantendo a sua rede de contactos e aspectos culturais e o direito e respeito pela orientação sexual devendo @s idos@s com relações homossexuais, lésbicas, bisexuais ou outras manter as mesmas sem preconceitos dentro dos lares que integrem. No projecto social e político de esquerda, todos os direitos devem ser assegurados. Não podemos aceitar menos que isso. Nádia Cantanhede
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A Comuna 33 e 34
A Comuna 34 (II semestre 2015) "Luta social e crise política no Brasil" | Editorial | ISSUU | PDF
A Comuna 33 (I semestre 2015) "Feminismo em Ação" | ISSUU | PDF | Revistas anteriores
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