Que capital é esse? Versão para impressão
Sábado, 03 Novembro 2012

capitalqualQuando Thatcher declarou que não há sociedade, apenas indivíduos estava a resumir a slogan uma ideia política e económica que deu tiro de partida ao neoliberalismo e que pode servir como ângulo de análise para aquilo que se convencionou chamar de pós-modernismo.

Artigo de Moisés Ferreira


À ilusão de liberdade, incorporando aparentemente as reivindicações de 68, a criação da individualidade servia mais para resolver algumas contradições do capital, nomeadamente a de que tendo criado ambientes e condições para que trabalhadores que partilham a mesma condição se reunissem e se tornassem um coletivo, o capital deu mais força ao fator trabalho. A contradição era evidente: o capitalismo necessita da força de trabalho mas deve evitar que os trabalhadores se unam, pois isso dar-lhes-á mais peso na correlação de forças.

A ideia da individualidade contra o coletivo, como se fosse a liberdade contra a burocracia, o desejo contra a realidade, permitiu ajudar a resolver essa contradição, principalmente numa altura em que o nexo tempo-espaço se rompia.

Não só as vias de comunicação permitiam mais rapidez, como as novas tecnologias inventavam já a desmaterialização de processos, enquanto a globalização derrubava barreiras físicas e geográficas. Isto garantiu ao capitalismo um modo de produção menos dependente do espaço, mais a mais com a crescente financeirização da economia.

O capitalismo iniciava, por isso, uma nova forma de dominação baseada nos slogans da individualidade e baseado no movimento do capital sobre o trabalho. A primeira – a individualidade – subvertia a relação de forças capital/trabalho, minando o coletivismo e a ideia de que união faz a força. A segunda – o movimento – subordina o trabalho ao capital, seja pela chantagem de que no Leste da Europa ou na Ásia não falta mão de obra mais barata do que tu, seja porque obriga o trabalho a correr atrás de um capital cada vez menos sedeado em espaços físicos, coletivos e comuns.

A caracterização do pós-modernismo costuma incluir estas duas dimensões – individualidade e movimento – para depois concluir pela volatilização de laços, pela ausência de futuro e por uma lógica social e profissional de viver o momento e ter como objetivo o movimento. Seja porque a ausência de futuro – ou de pensamento a longo prazo – dificulta a denegação do prazer, seja porque a ausência de referências num mundo volatilizado, obriga à criação de de falsas sensações de controlo, o desejo e o princípio do prazer assumiram a forma de consumismo.

Para o capitalismo, a individualidade, o movimento e o consumismo são vértices fundamentais para a dominação. Já vimos o papel da individualidade e do movimento, tentemos perceber o papel do consumismo – que resulta dos dois primeiros. O consumismo, como lógica de consumo como objetivo em si mesmo, permite não só ao capitalismo a instrução e instrumentalização do desejo do consumidor, tornando-o mais vulnerável à manipulação; como permite uma maior acumulação por aceleração do ciclo de mais-valia.

Deste mundo pós-moderno, do qual a terceira via queria disputar apenas o papel do pós-materialismo, resulta uma dominação do capitalismo resultante desse slogan thatcheriano que inaugura o neoliberalismo.

Fica a questão para futuras reflexões: a sociedade de austeridade, hoje mais próxima da lógica religiosa da procrastinação do prazer do que da lógica hedonista do desejo imediato, não será um novo discurso de capitalismo que, afundando o pós-modernismo neoliberal, funda uma outra forma de dominação mais ortodoxa? Não estará o capital, em consequência, a substituir a forma de acumulação por aceleração do ciclo de mais valia por uma maior agressividade na acumulação por via da exploração e da redução de custos com mão-de-obra? Resulta daqui a construção de desemprego estrutural, a destruição da segurança no desemprego e a apologia do trabalho à borla, voltando-se a centrar o conflito social nas questões do trabalho ou, se quisermos, materialistas.

Se isto é condição para certidão de óbito social-liberalismo, qual a extensão dos ferimentos ao pós-neoliberalismo e sua cara metade, o neoliberalismo?

 

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