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Sexta, 08 Março 2013

8marçoAs artes aplicadas sempre foram associadas ao estigma do trabalho feminino. O acesso das mulheres às Escolas de Arte e ao estudo do nu podem ter contribuído para este estigma, uma vez que não podiam inscrever-se em Cursos Superiores Artísticos (Nochlin,1973).
Assim, as artes aplicadas foram sendo feminizadas e "consideradas inferiores na hierarquia dos géneros artísticos foram sendo associadas às práticas artísticas de mulheres"(Paulino, 2010). A perceção social era de que estes trabalhos, fruto das atividades femininas e executados dentro do lar, eram adequados às mulheres quer pela sua textualidade, domesticidade e, pela natureza dos mesmos tendo ficado arreigados e trespassado, com forças, crenças e práticas dos campos artísticos.
Nas primeiras décadas do seculo XX já várias/os artistas utilizavam os têxteis e tentavam que, estas atividades artísticas nada tivessem que ver com as questões de género, caso de Alice Baily de Giacomo Balla, Sonia Delaunay, Regina Gomide Graz, estes/as artistas conferiram às obras têxteis o estatuto de obras artísticas "sem colocar em xeque os conceitos e práticas que perpassam as definições do que é ou não arte, ou seja, os mecanismos de exclusão que operam no interior do campo artístico" (Paulino, 2010: 9).
Nesta sequência, a artista plástica Mirian Schapiro (1970) vai propor a revalorização de práticas que eram consideradas tradicionalmente femininas e, por conseguinte, consideradas domésticas e não artísticas, vai pegar nessas práticas para criticar os discursos de poder dominante, assim como as falas, os silêncios, as omissões e os preconceitos da história da arte.
"As mulheres sempre falaram", e o bordado foi uma das formas de linguagem que utilizaram: "o bordado era uma dessas coisas que as mulheres faziam, e que quase sempre fizeram e eu resolvi promovê-lo, dando-lhe a importância de uma linguagem" diz a artista plástica Mariana Selva numa entrevista.
É um facto que as mulheres sempre foram silenciadas na esfera do privado e na esfera do público; silenciadas durante anos pelo marido, pelo companheiro, que decidia e decide as suas vidas. No entanto, as mulheres sempre falaram, mesmo que seja sem palavras, arranjando estratégias diversas através do bordado.
No início do seculo XX, as escolas ensinavam a arte de bordar às raparigas "para que elas soubessem bordar o seu enxoval, era bonito a mulher ter todo o seu enxoval bordado, as vezes levavam muitos anos a confecionar cada peça do enxoval para o casamento. Isabel Allende refere-se ao bordado e às tarefas domésticas como preparação para o casamento, no seu livro a "Casa dos Espíritos", quando refere que:
"Entretanto, esperava por ele sem se aborrecer, imperturbável na gigantesca tarefa que tinha imposto a si própria: bordar a toalha maior do mundo. Começou com cães, gatos e borboletas, mas logo a fantasia se apoderou do seu trabalho e foi surgindo um paraíso de animais impossíveis que nasciam da agulha em frente dos olhos preocupados do pai. Severo considerava que era tempo da filha sair da modorra e de ter os pés assentes na terra, de aprender algumas tarefas domésticas e preparar-se para o matrimónio, mas Nívea não compartilhava dessa inquietação. Preferia não atormentar a filha com exigências terrenas, pois pressentia que Rosa era um ser celestial, que não tinha sido feito para durar muito tempo no bulício grosseiro deste mundo, por isso deixava-a em paz com os seus fios de bordar e não comentava aquele jardim zoológico de pesadelo."
Numa tentativa de recriar o mundo, as mulheres sonham e utilizam o bordado para o fazer. Dominando os códigos desta linguagem vão ressignificando um universo discursivo e neste sentido, o deslocamento de um lugar social para um lugar discursivo imaginário, ou seja, "um exercício de alteridade da e pela linguagem que lhe confere uma autoria como forma de emergência de um sujeito do mundo nele próprio" (Richard, 2002:149). Fios e agulhas tecem/destecem/alinhavam/suturam e cerzirão um discurso que compreende também uma linguagem, que lhes serve de meio para representar a realidade na qual vivem.
E neste sentido, artistas plásticas feministas utilizam esta forma de linguagem para denunciar a opressão a que as mulheres estão sujeitas, provocando novas leituras, recusando-se a ser encerradas em fronteiras. Considerando que é mais fácil escrever bordando do que falar, isto porque muitas das vezes, as palavras esbarram na linguagem estereotipada e dominante, havendo uma ligação entre linguagem e dominação, desempoderando homens e mulheres "que apenas começaram a aprender a falar, que apenas começaram a aprender a reivindicar" (Hooks, 2007: 858), fazendo de nós sujeitos.
Neste sentido, o bordado também serve para escrever, "podemos escrever uma carta bordando, podemos transmitir uma mensagem de socorro de uma forma que não é possível ser entendida pelo agressor". (Ent., M: 48). As mulheres ao longo dos tempos têm arranjado estratégias de comunicação através do bordado, caso dos lenços dos namorados, onde realçam "o amor, a saudade, a solidão, a necessidade, a possibilidade, mas também a exploração a que são submetidas há séculos" (Chagas, 2007), não conseguindo, muitas das vezes, ser ouvidas na sua sororidade.
Pretendendo dar visibilidade às lutas das mulheres, Maisa Ferreira, artista plástica tem como objetivo uma oficina de bordado dentro da categoria de educação informal em que relaciona os conceitos de género e o bordado como cultura tradicional.
Elaine Reichek artista plástica, ligada ao movimento feminista na Arte e à Arte Concetual passou a utilizar o bordado sobre linho na produção dos seus trabalhos, criava imagens digitais que posteriormente bordava, Mariana Selva borda cenas de violência doméstica e utiliza objetos inofensivas, do domínio do lar, que têm que ver com a realidade vivida pelas mulheres e, dar-lhe uma nova leitura.
Abre-se assim um outro espaço de diálogo com o objeto/ pessoas, dado que este deixa o lugar-comum para passar para outro lugar, ter outro nome, outra relação com o espaço e utilidade. Esses objetos contam histórias, vivências, como o bordado e os tecidos que, "na natureza propõem com frequência uma nova alienação estética entre o natural e o cultural" (Jefferies,1998: 290), arquitetando uma intrincada rede de linguagens entre jogos e feminilidade.
Os/As artistas usam todo um processo de execução tradicional, inovando nos temas, texturas e propostas de composição. Estas narrativas permitem aos/às artistas procurar as vozes das mulheres, que revelam, sem pretensão, palavras do quotidiano e práticas comuns. Vozes de mulheres que revelam a vida das pessoas e das coisas, "ao tecerem a 'colcha' de suas vidas, elas colocam as 'parcerias' conquistadas e desfeitas nessa trajetória. Deixá-las 'falar' através de seus bordados, é 'escutar' o que, na maioria das vezes, ninguém quer ouvir, talvez só as vizinhas" (Chagas,2005: 293). Neste sentido a comunicação aparece-nos como uma permuta entre dois mundos que se confrontam e onde existem visões diferentes, mas também uma organização do sentir e pensar. As artes são formas de comunicação privilegiadas que desconstroem discursos dominantes e onde as mulheres se afirmaram como sujeitos eloquentes.


Ana Paula Canotilho

[A Comuna. 29 (janeiro-março 2013) 42-44.]


Referências
Chagas, Claudia Regina Ribeiro Pinheiro das – bordado como expressão de vida: gênero, sexualidade. – UERJ . 30ª REUNIÃO ANUAL da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) em Caxambu/MG - Brasil, 07 a 10 de outubro de 2007.
Hooks , Bell – "Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens". In: Revista Estudos Feministas (vol.16, no.3 ,  Set./Dec. 2008). Florianópolis. Disponível em <http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2008000300007>.
Nochlin, Linda. Why There Have Been no Gratests Women Artists? Art and Sexual Politics. New York: Macmilan Publishing Co, 1973. 2ª ed.
Richard, N. Experiência e representação: o feminino, o latino-americano. In: Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 142-155.
Simion, Ana Paula – Bordado e transgressão: questões de gênero na arte de Rosana Paulino e Rosana Palazyan. In: Revista Proa (n°02, vol.01, 2010). Disponível em <http://www.ifch.unicamp.br/proa>.

 

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