Marxismo: Uma visão bastante invulgar das relações internacionais Versão para impressão
Sexta, 15 Março 2013

teoria c29"Em comparação com o realismo e o liberalismo, o pensamento marxista propõe uma visão bastante invulgar das relações internacionais. Enquanto as anteriores representam a política mundial sob formas que fazem eco das visões apresentadas nos nossos jornais e revistas, as teorias marxistas têm como objetivo expor uma verdade mais profunda, subjacente, ou seja, escondida de facto."

Stephen Hobden e Richard Wyn, 2011[1]

Quem estuda ou estudou Relações Internacionais já se deparou com esta pergunta: 'Idealismo ou Realismo?'. É com esta pergunta com rasteira que costumamos perder a bússola que indica a esquerda. O Idealismo diz-nos que a política é 'a arte do bom governo'. O Realismo diz-nos que a política 'é a arte do possível'. Vemo-nos forçados a escolher entre a ingenuidade/bondade do otimismo antropológico Idealista e o cinismo/maldade do pessimismo antropológico Realista. Nada disso. O objetivo deste artigo é fornecer pistas acerca de uma abordagem socialista e verdadeiramente emancipatória por não abdicar da cientificidade nem ceder ao positivismo.

Na coletânea chamada International Relations Theory for the Twenty-Fist Century. An Introduction, o coordenador dessa publicação Martin Griffiths apresenta-a da seguinte forma: "As Relações Internacionais (RI) tornaram-se um espaço de intenso debate nos últimos anos. Há uma década ainda era possível dividir este campo em três principais perspetivas – Realismo, Liberalismo e Marxismo". Ou seja, sendo o livro de 2008, reportava-se sensivelmente ao tempo até 1998. Afirmando seguidamente que desde então: "[n]ão apenas estas abordagens evoluíram em novas direções, mas a elas juntaram-se uma série de novos 'ismos' competindo pela atenção, incluindo o feminismo e o construtivismo"[2].

Já Marcos Farias Ferreira, na sua obra Cristãos & Pimenta. A Via Média na Teoria das Relações Internacionais de Adriano Moreira apresenta outra perspetiva. Embora não negue a diversidade da disciplina, defende que "[o] ponto crucial desta problemática é que, enquanto categorias heurísticas, [realismo e idealismo] põem em destaque duas dimensões contrastantes da realidade – a dimensão material, associada ao realismo, e a dimensão 'ideacional' associada ao idealismo"[3].

Quando Marcos Farias Ferreira fala em categorias heurísticas está a empregar realismo e idealismo em sentido amplo e com o objetivo de usar essas categorias para compreender/organizar as diversas teorias. Mais adiante afirma:

"Se é verdade que, de acordo com o realismo, as relações internacionais conformam um domínio de possibilidades políticas limitadas ao permanente conflito de interesses, o idealismo representa a liberdade do 'ideacional' por oposição à necessidade do 'material' e assenta na possibilidade de levar à prática os propósitos emancipatórios inerentes aos ideais humanos"[4].

Assim sendo, coloca, de um lado, o conservadorismo materialista e, do outro, o progressismo idealista. Noções que são úteis à compreensão da chamada "via média", que é aliás o objeto da referida obra. Porém esta organização, em meu entender, prejudica a compreensão da perspetiva emancipatória proposta pelo materialismo histórico. Sendo esta perspetiva fundada justamente na superação quer do materialismo contemplativo quer do idealismo.

Do mesmo modo tem interesse organizativo a síntese feita por José Adelino Maltez acerca da discussão paradigmática do princípio desta disciplina académica: "se os idealistas [de matriz kantista] acentuavam a necessidade da emancipação e os realistas [de matriz hobbesiana] observavam a realidade da anarquia internacional, já os grocianos insistiam na necessidade da ordem"[5]. Refere ainda a tentativa organizativa proposta por Martin Wight "three traditions: realismo (de marca maquiavélica), racionalismo (grociana) e revolucionismo (kantista)"[6].

Aquela classificação na esteira de Wight, justamente por ser situada no tempo e no espaço dos primórdios da disciplina, deixa de fora aquilo a que Maltez chama teorias de "linhagem neomarxista, como a teoria da dependência, originária das teses de Raúl Prebisch, a tensão centro-periferia, de Samir Amin (1931-), e a visão do sistema-mundo, de Immanuel Wallerstein"[7].

Também Victor Marques dos Santos e Maria João Ferreira dedicam um capítulo do recente Teorias das Relações Internacionais a "O Neo-Marxismo"[8], caracterizando este neo-marxismo como uma vertente da perspetiva estruturalista "que influenciou a elaboração teórica em RI a partir da década de 1960"[9].

No meu entender, apesar do caráter estruturalista desta linhagem neomarxista iniciada nos anos 1960/70 nas Relações Internacionais, a sua existência na historiografia académica das Relações Internacionais fornece também um ponto de apoio que ajuda a traçar as ligações genealógicas desta parentela afastada a uma grande família do materialismo emancipatório, ou seja, à tradição marxista. Sendo que considero mais operativo, para não nos perdermos na floresta dos paradigmas das Relações Internacionais, usar as coordenadas que cruzam a filosofia política (conservadoras, liberais, socialistas), com a divisão coxiana "teorias de resolução de problemas" versus "teorias críticas" e com a filosofia da ciência (positivista, pós-positivista, realista crítica).

Apesar dessa minha proposta de classificação há que convir que, embora os chamados "Grandes Debates" das Relações Internacionais sejam um mito, eles são também incontornáveis. A ideia de grandes debates na disciplina, alimentada pelas consequências previstas ou imprevistas do kuhnianismo, tende para os seguintes cúmulos: num extremo, um evolucionismo cientifista acrítico, em que a nova "ciência normal" é superior às anteriores, no outro, um ludismo epistemológico, em que o fetiche é a procura da última moda teórica.

No entanto, julgo ser através da sua crítica e aproveitando a sua organização historiográfica que chegamos a conhecer melhor esta disciplina académica. O chamado primeiro debate é entre o realismo político e o idealismo. A partir de agora falarei sempre de realismo político para me referir à tradição realista conservadora das relações internacionais. Este primeiro debate envolve divergências filosóficas entre o pessimismo antropológico (ou seja, o conservadorismo do realismo político) e o otimismo antropológico (dos liberais ou idealistas)[10]. O "segundo debate" das RI, chamado metodológico, ocorre entre tradicionalistas e comportamentalistas/cientificistas. De um lado os defensores dos tradicionais métodos da história, do direito e da filosofia e, do outro, os defensores da ciência empirista. O "terceiro debate" surge com várias versões: neo-realistas vs neoliberais; neo-realistas vs globalistas; epistemologias positivistas vs pós-positivistas [11].

Apesar daqueles debates, o verdadeiro debate metateórico só chega às RI pela via do neo-gramsciano Robert Cox [12]. "Uma teoria serve sempre a alguém e a algum propósito" afirmou teórico canadiano Robert Cox, em 1981, num artigo que é aceite como a chegada da teoria crítica às Relações Internacionais: "Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory". Distinguindo, por um lado, aquilo a que chama "teorias críticas", que seriam comprometidas com a emancipação, por outro, as "problem-solving theories" ou "teorias de resolução de problemas". Esta distinção revela-se decalcada da diferença entre teorias críticas e teorias clássicas feita por Max Horkheimer, em 1937 [13], embora Cox se inspire mais em Gramsci que na Escola de Frankfurt.

A minha proposta é que considerados os contributos de linhagem marxista bem como outros que sejam úteis à compreensão das Relações Internacionais, a revitalização da tradição marxista das relações internacionais deverá ser feita através do debate aberto pelo realismo crítico nesta disciplina.

Colin Wight e Johnathan Joseph na introdução [14] à coletânea Scientific Realism and International Relations afirmam que: "[o] realismo científico/realismo crítico trabalha ao nível da crítica filosófica, desafiando os pressupostos filosóficos da maioria das teorias contemporâneas das RI e dessa forma introduz por si só contributos epistemológicos e ontológicos" [15]. O realismo crítico é um desenvolvimento específico do realismo científico aplicado às ciências sociais. As aplicações desta filosofia da ciência às ciências sociais têm em comum o facto de considerarem, ou pelo menos não negarem, as seguintes características, de acordo com resumo de Wight e Joseph:

"Existe uma realidade social que consiste em múltiplas forças que condicionam as vidas dos indivíduos; algumas dessas forças podem bem se inobserváveis, no entanto, são reais; estas forças são estruturadas por forma de relações externas e internas, estruturas de poder e papéis sociais; as ciências sociais podem não captar a natureza das forças causais meramente através da investigação empírica; as ciências sociais e políticas são fundamentalmente sociais e políticas por natureza e refletem, em parte, a posição do investigador na realidade social; a interação entre agentes e estruturas e forças materiais e ideacionais é uma questão para ser colocada empiricamente e não por decreto teórico".[16]

Colin Wight e Johnathan Joseph consideram que a tentativa de autores como Chris Brown [17] para reduzir o realismo crítico a uma forma de marxismo é problemática. Em primeiro lugar, reduzir o realismo científico/realismo crítico ao trabalho de Roy Bhaskar, como faz Brown, é para Wight e Joseph um erro porque a via de Bhaskar não é o único realismo científico possível. Muitos autores, que acolheram o realismo crítico, vão para além do trabalho de Bhaskar: não aceitando, e bem do meu ponto de vista, nomeadamente a sua dialética transcendental – como é o caso de Callinicos[18] [19] Além disso, e como argumentam Wight e Joseph, o realismo crítico é consistente não apenas com o marxismo mas também com o feminismo e as teorias críticas das relações internacionais[20].

Os feminismos e as teorias críticas podem ser, embora não tenham de ser, integradas numa grande abordagem das relações internacionais alicerçada na teoria social marxista. Outras abordagens de realismo crítico são possíveis.

O imperialismo global, a transnacionalização das classes, a relação entre a contradição trabalho vs capital e a contradição povos vs imperialismo, a contradição de género, a emancipação das minorias sexuais, a relação do imperialismo com o direito internacional e deste com a emancipação, a questão nacional e o internacionalismo, a teoria do Estado e sua relação com a questão da guerra e cooperação internacional, os problemas ambientais, os bens comuns e a soberania alimentar... tudo isso são questões às quais a teoria marxista das relações internacionais tem de saber responder.

A minha proposta é que uma abordagem que reinterprete os contributos do feminismo, da teoria crítica e (mesmo de outras tradições teóricas) com base na teoria social marxista é a mais adequada para as Relações Internacionais. É necessário corresponder também teoricamente à unidade (ontológica) da realidade social, desta forma constituindo um amplo campo de compreensão das relações internacionais como uma questão não apenas de Estados mas também de géneros, classes, povos e potências.

Bruno Góis

A Comuna. 29 (janeiro-março 2013) 26-29.

 

Referências:

[1] Stephen Hobden & Richard Wyn Jones – "Marxist theories of international relations". in John Baylis, Steve Smiths & Patricia Owens (Eds.). The Globalization of World Politics. An Introduction to International Relations. 5th Ed. New York: Oxford University Press, 2011.

[2] Martin Griffiths (Ed.) – International Relations Theory for the Twenty-Fist Century. An Introduction. London and New York: Routledge, 2007. p. i.

[3] Marcos Farias Ferreira – Cristão & Pimenta. A Via Media na Teoria das Relações Internacionais de Adriano Moreira. Coimbra: Edições Almedina, 2007. p. 194.

[4] Idem. Ibidem. p. 197.

[5] Maltez, José Adelino – Curso de Relações Internacionais. S. João do Estoril: Principia, Publicações Universitárias e Científicas, 2002. p. 196.

[6] Idem. Ibidem. p. 222.

[7] Idem. Ibidem. p. 216.

[8] Victor Marques dos Santos &Maria João Militão Ferreira – Teorias das Relações Internacionais. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2012. pp. 217-244.

[9] Idem. Ibidem. p. 217.

[10] Aqui refiro-me apenas ao dito "primeiro debate". Sobre as taxonomias e causas da paz e da guerra nas diferentes vertentes de Realismo e Liberalismo ver os quadros das páginas 90 ("Realism", artigo de Tim Dunne e Brian Schmidt ) e 103 ("Liberalism", artigo de Tim Dunne) em John Baylis, Steve Smiths & Patricia Owens (Eds.) – The Globalization of World Politics. An Introduction to International Relations. 5th Ed. New York: Oxford University Press, 2011.

[11] Marco António Menezes e Silva – "Teoria Crítica em Relações Internacionais" in Contexto Internacional. 27, 2 (julho/dezembro 2005).249-282.

[12] Idem, ibidem.

[13] "Teoría tradicional y teoría crítica" in Max Horkheimer – Teoría crítica. 1ª Ed. 3a reimp. Amorrortu editores: Buenos Aires, 2003. pp. 223-271.

[14] Jonathan Joseph and Colin Wight (Eds.) – Scientific Realism and International Relations. Chippenham and Eastbourne, Great Britain: Palgrave Macmillan, 2010. pp. 1 a 30.

[15] Idem. Ibidem. p. 1.

[16] Idem. Ibidem. pp. 1 e 2.

[17] Chris Brown – "Situating critical realism". Millennium: journal of international studies. 35 (2). 2007. pp. 409-416.

[18] Roy Bhaskar & Alex Callinicos - "A Debate: Marxism and Critical Realism". Journal of Critical Realism. 1:2. may 2003. pp. 89-114.

[19] Alex Callinicos – "A Crintical Realist Onthology". in Alex Callinicos – The resources of critique. Cambridge: 2006. pp. 155-181.

[20] Jonathan Joseph & Colin Wight. Opus cit. p. 3.

 

 

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