Rutura dialética entre Marx e Hegel Versão para impressão
Sexta, 15 Março 2013

teoria c29A dialética é o estudo da unidade dos contrários, a lógica do movimento real e o seu reflexo intelectualizado.

 

 

 

Artigo de Lídia PereiraA Comuna. 29 (janeiro-março 2013) 30-32.

"As minhas relações com Hegel são muito simples. Eu sou um discípulo de Hegel e o palavrório presunçoso dos epígonos, que julgam ter enterrado este pensador eminente, parece-me ridículo. Contudo tomei a liberdade de adotar para com o meu mestre uma atitude crítica, de libertar a sua dialética do misticismo e de a submeter a uma transformação profunda." Karl Marx, O Capital - Livro I

 

A lógica de Hegel, o próprio Marx o afirma, lançou as bases para o desenvolvimento, em continuidade dialética, do seu próprio método. Quais são, portanto, estas bases e quais os pontos de rutura que permitiram ao marxismo uma demarcação das estruturas idealistas do sistema hegeliano?

Na sua aceção moderna, a dialética é o estudo da unidade dos contrários, a lógica do movimento real e o seu reflexo intelectualizado - a realidade não é um conceito estanque, acabado, antes se encontra em constante definição. Define-se por oposição à lógica formal hegemónica, de raízes metafísicas, segundo a qual o movimento é apenas aparência, garantindo assim a imutabilidade e identidade da essência. A dialética assume a não-identidade de tudo quanto existe, pois todas as coisas contêm em si a sua própria negação. Estão, por isso, determinadas a mudar, a movimentar-se em direção à sua própria evolução.

Hegel descriminou este movimento de conjunto, isto é, assumiu a conceção do universo, da Natureza, da História e dos conceitos enquanto unidade em superação negativa, em transformação, em movimento. Esta totalidade concreta, esta unidade dos contrários onde todas as coisas se auto e inter-relacionam constitui o princípio metodológico primeiro do método dialético. No entanto, apesar de lançar as sementes de toda a dialética conseguinte, esta dialética hegeliana necessita primeiro de ser libertada dos seus véus idealistas.

E em que consiste, ao certo, este idealismo? Para Hegel, o real era uma realização no tempo da Ideia Absoluta, existente anteriormente à matéria. Assumindo a coincidência de todo o real com o racional e vice-versa, toda a História para ele não passaria de uma determinação do Ser Absoluto que, assimilando as imperfeições da matéria, a realizaria em constante transformação, retornando, neste processo de superação ascensional, a si mesma. Isto indica, claramente, os limites de uma realidade que o materialismo consideraria enquanto aberta e ilimitada. Esta conceção da Ideia Absoluta implica que, para Hegel, o sensível é uma consequência do especulativo e, por isso, todo o movimento, toda a transformação, se realiza neste plano apenas. A tarefa de Marx e Engels, neste ponto, será a de extrair desta dialética o seu núcleo racional, pois como os próprios afirmam esta caracteriza-se por ser um materialismo idealisticamente invertido.

Nesta rutura dialética, Marx e Engels desenvolverão num plano materialista a lógica hegeliana, sem que por isso a reneguem. Marx, especificamente, estabelecerá com Hegel os seguintes pontos de rutura:

 

Crítica ao Estado Burguês

Na sua conceção de Estado, Hegel atribui ao Estado burguês o papel de sujeito, não passando os homens de meros predicados. Quer isto dizer que as instituições político-jurídicas, correspondendo à Ideia, moldam a existência política e jurídica dos homens, e não o contrário. Se o Estado, tal como ele existe, porque é racional todo o real, se encontra assim justificado, nenhum espaço real, material, se torna aberto à práxis, à força modificadora da ação revolucionária. Esta ação situar-se-á, em Hegel, tão-somente no plano da Ideia. Este idealismo é a justificação última do Estado burguês. E é esta conceção conservadora que Marx jamais poderá aceitar - precisamente nesta cisão entre o real e o racional consiste o segundo ponto de rutura.

 

O Ser e o Pensamento

"Já nos escritos de 1844 Marx se afasta radicalmente de Hegel que concebia o real como identidade da não-identidade, do real e do pensamento fundindo-se no Saber Absoluto." 1

Se em Hegel a Ideia é sujeito e o real predicado, isto é, o real existe apenas em função do especulativo, em Marx fica claramente demonstrada a inversão materialista desta correspondência - o ser existe anteriormente e para lá, independentemente do pensamento, que se limita a apreendê-lo, a conhecê-lo. Ele é o reflexo intelectual do real em movimento negativo. Se é verdade que tudo o que existe é passível de se tornar objeto vivo do conhecimento, é igualmente verdadeira a subsistência da matéria para lá dos fenómenos cognitivos. O ser pensante existe, não para que dele resulte o ser, mas tão só e apenas porque a matéria lhe é exterior.

 

Conceção da História Real

Em Hegel, como não poderia deixar de ser, encontraremos uma conceção de História em relação estreita com a de Saber Absoluto - a primeira não passa de uma mera realização da última. Assim, o sujeito da História é transcendente ao homem, que lhe serve de suporte. Esta conceção de humanidade enquanto concretização da História em direção ao Ser Absoluto, Marx criticará impiedosamente, pois que a massa humana será por ele indicada enquanto agente ativo no desenvolvimento real da História. Tomando as rédeas da ação, cabe à humanidade o papel modificador estruturante do real, a realização da História da qual é sujeito. A História é, assim, a história da luta de classes.

 

Finalidade Prática da Dialética

Este último ponto de ruptura diz respeito à concepção conservadora da dialética em Hegel - como já foi referido, se todo o real é racional, tudo quanto existe se encontra já justificado, sendo que a ação prática sobre o real se vê, em nome de uma Ideia, de um Ser Absoluto, condenada ao esquecimento. Já a concepção revolucionária da dialética de Marx põe em causa a ordem de tudo quanto existe - se tudo está em permanente movimento, movimento esse provocado pela existência de um negativo para todo o positivo, se tudo se supera pela sua contradição, então tudo quanto existe deverá ser submetido ao exame minucioso da crítica, pois a razão, enquanto reflexo do real em movimento apreende a destruição de tudo quanto existe, o carácter transitório de todas as coisas. É então necessário atuar praticamente neste processo histórico material, concreto, e não submeter este plano sensível ao de um Saber Absoluto incapacitante.

 

Em jeito de conclusão, importa referir ainda a distinção que ocorre entre método e sistema. Rejeitando o estabelecimento de um sistema cujo dogmatismo feriria a ação prática do homem, impossibilitando-a, Marx assume, por oposição à noção de sistema, a concepção de método dialético, revolucionário, em permanente movimento tal como a realidade de que é reflexo, sublinhando assim o papel do homem enquanto ator e sujeito da História. Em suma, do sistema dogmático idealista de Hegel o marxismo nada herdou - foi antes o seu método dialético que estabeleceu as pedras basilares desta filosofia da ação.

Lídia Pereira

A Comuna. 29 (janeiro-março 2013) 30-32.

 

Referências:

1 Brohm, Jean-Marie - O que é a dialética?. p. 20.

 

Pesquisa adicional:

Brohm, Jean-Marie - O que é a dialética?. 41ª edição. Lisboa: Savelli/Edições Antídoto, 1979.

Konder, Leando - O que é a dialética. 28ª edição (1ªed, 1981). São Paulo: Editora Brasiliense, 1998.

 

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