Der Letzte Man |
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Sexta, 15 Março 2013 | |||
Apesar de não ser atualmente o seu filme mais famoso, Der Letzte Mann foi um sucesso entre o público e a crítica e projectou internacionalmente o realizador, que veio a terminar a carreira em Hollywood, sendo hoje em dia considerado por alguns críticos a sua obra seminal. O filme acompanha alguns dias na vida de um porteiro cujo nome nunca chegamos a conhecer e que exerce as suas funções no Hotel Atlantic. O homem, já de certa idade e de porte orgulhoso e imponente, tira grande prazer da sua função. Cumprimenta alegremente os clientes do hotel, acompanha as senhoras ao táxi, sempre com um grande sorriso e nunca descurando a aparência, já que transporta no bolso um espelho e regularmente ajeita o cabelo e as suiças fartas. Tem particular orgulho na sua vistosa farda, da qual retira um forte sentido de dignidade e que inspira admiração na sua comunidade, um pobre bairro operário. A idade começa, porém, a pesar no porteiro, e após transportar uma mala pesada vê-se obrigado a sentar-se e a beber um copo de água, ocorrência que não passa despercebida ao gerente do hotel, que se apressa a tomar nota do sucedido. No dia seguinte, ao chegar ao Hotel, o porteiro encontra a sua posição ocupada por um outro homem, mais novo e ainda mais imponente. Já no escritório do gerente, este informa-o friamente de que, dada a sua idade avançada, deixará de cumprir funções como porteiro e deverá substituir o mais velho empregado do hotel, que se acaba de reformar, no cuidado dos lavabos. Perante o olhar indiferente do gerente, é despido da farda à força e conduzido para os lavabos através de uma escada que poderia bem ser a entrada para o submundo de Hades... A partir daqui o filme ganha um tom predominantemente subjectivo, fazendo uso de uma gama de recursos técnicos para nos transportar para uma realidade distorcida, o mundo do ponto de vista do protagonista, e nos revelar a sua humilhação e o seu processo de perda de identidade. Incapaz de se separar da farda, o porteiro rouba-a durante a noite, mas o seu esquema vem a ser descoberto e o pobre homem é ridicularizado e marginalizado pela sua comunidade. Humilhado e abatido, vem à noite enterrar-se nos lavabos onde durante o dia trabalha, para se retirar do mundo e esperar a morte. Contrastando com o caráter literário e a temática ocultista dos anteriores filmes de Murnau, Der Letzte Mann tem uma história muito simples. No fim de contas, tudo se resume ao facto de o porteiro ver a sua farda trocada por outra. Não há qualquer menção a uma diminuição de salário (aliás, a questão económica nunca é colocada), ele não é despedido, e a justificação da idade é até plausível (quando, no escritório do gerente, o porteiro tenta provar que ainda está apto para continuar a exercer as mesmas funções, tenta levantar uma mala mas as forças não lhe chegam e a mala cai por terra, espalhando o seu conteúdo pelo chão). A narrativa centra-se essencialmente na construção do mundo interior de uma personagem cuja identidade e dignidade dependem do olhar dos outros. Para nos contar esta história plena de subjetividade, o realizador reuniu elementos de dois géneros cinematográficos alemães: o intimista Kammerspiel e o dramático expressionismo. Esta combinação era algo que, aliás, já vinha a desenvolver ao longo da sua obra até então. Murnau estudara teatro com Max Reinhardt, criador do Kammerspiel. Por outro lado, Carl Mayer, autor do argumento, e Karl Freund, director de fotografia, eram dois dos maiores nomes do cinema expressionista. A influência do Kammerspiel manifesta-se sobretudo na importância que a dimensão psicológica das personagens assume no argumento e no trabalho dos atores, particularmente de Emil Jannings, que interpreta o porteiro. A câmara segue-o em quase todos os planos, cortando para nos mostrar o que a personagem vê ou imagina. É concedida grande importância a cada pequeno gesto e expressão, como é evidenciado pelo constante recurso a grandes planos e planos de pormenor. Num toque mais expressionista, Murnau trabalha as potencialidades dramáticas da iluminação e da caraterização para acentuar as expressões de Jannings e evidenciar a metamorfose que a personagem sofre ao longo do filme. Outra caraterística que o filme vai buscar ao Kammerspiel e que contrasta com o cinema expressionista é a ausência de intertítulos (com apenas uma excepção de que falarei mais à frente). Murnau e Freund procuraram com este filme explorar as capacidades do cinema enquanto linguagem universal. Para isso levaram a cabo um virtuoso trabalho de câmaras e de décors, que tornam a linguagem visual de cinema tão eloquente que a narrativa se torna fácil de seguir e não se sente necessidade de intertítulos. Der Letzte Mann foi o primeiro filme que Murnau fez para os estúdios UFA, na altura os maiores estúdios na Alemanha, e que lhe concederam um orçamento de um milhão de marcos para desenvolver o projecto. Sendo um valor relativamente modesto, foi suficiente para que pudesse criar um elaborado décor simulando um ambiente urbano buliçoso e completamente desligado da natureza. O estilo oscila entre um realismo austero e cru, com perspetivas cuidadosamente calculadas, e o estilo dramático e exagerado de formas distorcidas que caracterizava o cinema expressionista, a que o filme recorre nas sequências de sonho ou para expressar a culpa e ansiedade do protagonista Foi também possível criar complexas estruturas que suportassem as câmaras e lhes permitissem total liberdade de movimento, numa técnica que veio a ser conhecida como entfelsste Kamera. A câmara move-se sem esforço, seguindo pessoas, descendo elevadores, voando pelo ar soprada por uma trompa, como se dançasse ao sabor das ondas sonoras. Este elaborado trabalho é um dos pontos mais valorizados do filme e valeu a Karl Freund a entrada no mundo de Hollywood. Planos como o que inicia o filme, revelando-nos o Hall do hotel, e o que inicia o epílogo, em que a câmara percorre toda a sala de jantar até nos revelar o porteiro por detrás de um grande bolo, vieram a servir de inspiração da diversos realizadores em Hollywood, dos quais o mais notável exemplo será a aclamada cena inicial de Touch of Evil (Orson Welles), em que a câmara sobrevoa um quarteirão até encontrar o protagonista. O filme deveria terminar com a derradeira descida do protagonista aos lavabos, onde adormece, mas neste momento o único intertítulo do filme informa-nos de que "o autor teve piedade do seu herói" e, se no mundo real pouco lhe restaria senão "esperar pela morte", o filme permite-lhe um destino diferente (e assumidamente improvável). Este Happy End, que muitos crêem ter sido uma imposição dos estúdios, tem um tom sarcástico e vários críticos lêem nele uma crítica quer ao cinema americano, quer a uma sociedade materialista e de aparências. Subitamente milionário, o porteiro é agora cliente do mesmo hotel onde foi despido da sua dignidade. A condição para ser aceite neste meio selecto? Só uma: ter dinheiro. Der Letzte Mann é um filme que se presta a várias interpretações. Onde uns vêm uma reflexão sobre a passagem do tempo, outros vêm o retrato de uma sociedade superficial e outros ainda uma crítica a um sistema capitalista opressor e desumano. Para lá das várias leituras políticas que possamos fazer – e lanço o repto a quem ler estas linhas de ver o filme e desenvolver a sua própria interpretação – no fim de contas estamos perante um belíssimo objecto cinematográfico que conquistou o seu lugar na história do cinema. Adriana Rosa Delgado
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