Soberania alimentar e feminismo Versão para impressão
Quarta, 15 Maio 2013

soberania alimentar

A situação de crise alimentar que se agravou nos anos de 2007 e 2008 com um aumento do preço dos alimentos básicos expôs a vulnerabilidade do sistema agrícola e alimentar mundial que permite que uma em cada 6 pessoas no mundo passe fome, de acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação). O modelo agro-industrial adoptado atualmente revelou-se incapaz de satisfazer as necessidades alimentares da população mundial e é também incompatível com a natureza. Este modelo, produtivista, insustentável e privatizado, encontra-se concentrado numa cadeia comercial monopolizada por multinacionais apoiadas por governos e instituições imperialistas quer dos Estados Unidos quer da União Europeia, que permitiu, por exemplo, triplicar a produção de cereais enquanto a população somente duplicou. Apesar de serem produzidos alimentos suficientes para a alimentar toda a população, as pessoas de baixos rendimentos, especialmente dos países do sul, não conseguem ter acesso a estes devido ao aumento dos preços. A maioria destas pessoas afectadas pela fome são mulheres e crianças.

As mulheres produzem, a nível mundial, 50% dos alimentos, sendo as principais responsáveis pela produção de alimentos básicos como o arroz, o trigo e o milho. Se viajarmos para o hemisfério sul esta percentagem aumenta para 60 a 80% (sendo 70% em África). As mulheres, que se responsabilizam há seculos pelas tarefas domésticas e pelas tarefas do cuidar, também se responsabilizam pela alimentação das suas famílias através do auto-cultivo e da comercialização dos excedentes provenientes daqui, de forma a garantir uma fonte de rendimento para o agregado familiar. Contudo, no trabalho agrícola, a par com outras esferas, continua a existir uma profunda divisão sexual do trabalho: as mulheres trabalham nos cultivos realizando tarefas não qualificadas enquanto os homens se encarregam da colheita e da plantação. Esta divisão marcada de género permite que homens e mulheres aufiram rendimentos diferenciados. No Estado Espanhol, por exemplo, as mulheres ganham menos 30% do que os homens. Em Portugal temos o exemplo das vindimas no Douro: enquanto as mulheres se encarregam da colheita das uvas, trabalho essencialmente manual feito em duras condições, os homens transportam em tractores com ar condicionado e camionetas, os cestos carregados de uvas que lhes vão passando. Na vindima do Douro não se misturam tarefas entre os sexos, nem dinheiro: os homens ganham sempre mais do que as mulheres, apesar de já não levarem as uvas às costas, só porque são homens.

O acesso á terra não é um direito garantido para muitas mulheres, uma vez que se trata de um activo muito importante: não só permite a produção de alimentos como serve de investimento futuro e como aval no acesso ao crédito. A dificuldade das mulheres em possuírem terras é mais um exemplo de como o sistema agrícola atual é baseado num sistema capitalista e patriarcal que as prejudica principalmente a elas. Apenas 1% dos empréstimos agrícolas no mundo é concedido a mulheres. Na Europa, a dificuldade é garantir segurança jurídica uma vez que a maioria das mulheres trabalha em terras pertencentes a familiares e como tal não têm direitos a apoios nem a cotas de produção. As mulheres europeias, são por isso, mais centradas nas lutas pelos seus direitos na exploração das terras enquanto nas outras regiões as mulheres lutam por mudanças que permitam o acesso á terra e a recursos básicos, como a água.

A par destas dificuldades, a aplicação de programas de austeridade nas décadas de 80 e 90 em vários países do hemisfério sul impostos quer pelo Banco Mundial quer pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) agravou as condições de vida destas populações, em particular das mulheres, uma vez que os governos se viram forçados a retirar as subvenções aos produtos de primeira necessidade (pão, arroz, leite,...) e a reduzir de forma drástica os gastos públicos com educação, saúde e habitação, e a privatizar vários serviços públicos, além da desvalorização das moedas nacionais com o objectivo de baratear produtos destinados á exportação, diminuindo, assim, a capacidade da população local de comprar produtos. Apesar de a distância ter mostrado que estas medidas mergulharam na pobreza as populações destes países, o Banco Mundial e o FMI, com o aval da União Europeia, continua 30 anos depois a aplicar a mesma receita aos países periféricos da Europa.

Este contexto levou á constituição de fluxos migratórios internacionais, que provocaram o abandono das terras e produziram uma espiral de opressão com estas mulheres imigrantes a desempenhar tarefas antes desempenhadas pelas mulheres locais. Estas mulheres assumiram as tarefas invisíveis do cuidar fruto da incapacidade dos governos ocidentais resolverem o direito ao acesso à saúde e permitiram a países como os da Europa absorver parcialmente a incompatibilidade entre o sistema capitalista e problemas sociais como o envelhecimento da população, permitindo, assim, a manutenção do estilo de vida ocidental.

A liberalização comercial, o pagamento das dívidas externas, a privatização dos serviços públicos assim como o modelo de agricultura e alimentação baseados numa logica capitalista desmontaram o modelo de agricultura tradicional que garantiu a segurança alimentar dos povos durante décadas. Para fazer frente a este modelo capitalista e patriarcal surgiu o paradigma da soberania alimentar.

A soberania alimentar pode ser definida como uma alternativa politica que consiste no direito de cada população definir as suas próprias políticas alimentares e regulamentar a produção e o mercado interno, tornado cada país soberano em relação à sua alimentação, permitindo ainda o impedimento da entrada de excedentes através de mecanismos de "dumping" e a promoção de uma agricultura local, diversificada e sustentável. A soberania alimentar propõe que se garanta o acesso de toda a população aos alimentos ao mesmo tempo que se opõe ao sistema agro-industrial actual e às políticas das instituições internacionais que o apoiam. A soberania alimentar é o direito dos povos a uma alimentação saudável e culturalmente adequada, produzida através de métodos ecologicamente sustentáveis e colocando as pessoas que produzem, distribuem e consomem no centro das políticas em detrimento das exigências dos mercados e das corporações.

Assim sendo, e uma vez que as mulheres representam, pelo menos, metade da mão-de-obra agrícola, uma soberania alimentar que não inclua uma perspectiva feminista não faz sentido. Qualquer avanço na construção de alternativas ao modelo agrícola e alimentar dominante deve ter um posicionamento feminista de ruptura com a lógica patriarcal e capitalista, uma vez que ele não pode prescindir do trabalho que as mulheres realizam nesta esfera. A produção local agro-ecológica (local, diversificada e sustentável) garante um rendimento quer em géneros quer em moeda aos mais pobres, aspecto muito importante se tivermos em conta os fenómenos de feminização da pobreza. A soberania alimentar feminista promove o comércio transparente, e o direito de utilizar e gerir as terras baseados em relações sociais livres de opressão e desigualdades entre homens e mulheres, povos e classes sociais.

A Via Campesina, o principal movimento internacional a favor da soberania alimentar feminista e que integra a Marcha Mundial de Mulheres, tem isto muito claro e como tal criou uma serie de alianças e redes de solidariedade internacionais entre mulheres que lhe permite difundir e lutar por este ideal.

Vários estudos demostram como a produção em pequena escala pode render de forma sustentável, ao mesmo tempo que utiliza menos combustíveis fosseis, especialmente se os alimentos forem comercializados localmente, tendo um impacto muito positivo na erradicação da pobreza, garantindo o acesso a bens essenciais, ainda mais quando ¾ das pessoas mais pobres do mundo são camponeses/as e pequenos/as agricultores/as, na sua maioria mulheres.

Vânia Martins

 

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