“Não é por 20 centavos” Versão para impressão
Quarta, 26 Junho 2013

bandeiraPara quem avaliava o Brasil como institucionalmente estável, fundamentado em uma economia em crescimento e em um governo com alta aprovação popular, as últimas três semanas foram desconcertantes. Mais de um milhão de manifestantes foram às ruas, divididos em pelo menos 400 cidades. A luta de classes se acirrou no país.

 

Artigo de Gabriela Caramuru

Para quem avaliava o Brasil como institucionalmente estável, fundamentado em uma economia em crescimento e em um governo com alta aprovação popular, as últimas três semanas foram desconcertantes. Mais de um milhão de manifestantes foram às ruas, divididos em pelo menos 400 cidades. A luta de classes se acirrou no país.

O movimento, que teve como norte a redução da tarifa de autocarro de R$ 3,20 para 3 reais, revelou dimensões múltiplas no enfrentamento às políticas liberais implementadas sem distinção pelos governos do PT e PSDB, partidos que aos olhos do senso comum polarizam a disputa entre esquerda e direita, respectivamente, no país. Prefeituras do PT (como São Paulo e Curitiba, governada pela aliança PT-PDT), PSDB (governos dos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Paraná) e até pela ultra-direita DEM (Salvador) foram alvo de ataques.

Surgiram como bandeiras das ruas: carência de comprometimento do Estado com a saúde pública (onde são frequentes mortes por falta de leitos, filas de espera de um ano para consulta com especialistas e é visível a ampliação da saúde privada); ampliação de verbas para educação pública (que sofreu recentes cortes com o governo do PT e foi o cenário de uma greve nacional de professores, funcionários e estudantes das universidades públicas em 2012); a proposta de "cura gay", com um viés patologizante da homossexualidade, debatido na comissão de direitos humanos da Câmara dos Deputados, chefiada pela bancada evangélica; a crescente violência policial nas manifestações e criminalização da pobreza; a construção da usina de Belo Monte, com a consequente retirada da população indígena, e, em especial, a crítica aos gastos públicos com a Copa do Mundo e Olimpíadas.  A previsão é de quase 33 bilhões de reais sejam gastos com o mundial, sendo 85,5% custeadas com orçamento público (embora se multipliquem as privatizações e as parcerias público-privadas nas estruturas construídas ou reformadas pelo governo). Cerca de 200 mil brasileiros serão removidos de suas casas para dar espaço às obras necessárias a Copa do Mundo e Olimpíadas. O aumento da militarização das cidades, a repressão a vendedores informais e a pessoas em situação de rua, a exploração sexual e a restrição a protestos. Tudo isso para jogos elitizados aos quais quase a totalidade dos brasileiros será privada do acesso.

A composição das manifestações brasileiras é, sobretudo, da juventude. Apoiada e seguida, em segundo momento, por milhares de trabalhadores indignados. O movimento como um todo aglutina bandeiras progressistas e tem em suas direções apenas organizações do campo da esquerda. Todos os movimentos sociais (o Movimento Passe Livre – MPL, fóruns locais de transporte, movimentos de luta por moradia, de mulheres, índios, negros, ambientalistas, anarquistas, centrais sindicais) e partidos de esquerda ao governo (PSOL, PSTU, PCB) estão na organização dos atos desde o início.  A recorrente negação da direção dos partidos políticos nos processos de luta, latente nas manifestações brasileiras, reflete o descontentamento das massas com os partidos tradicionais e, em última instância, com a democracia burguesa de gestão do capitalismo.

Embora com uma série de distorções como nacionalismos, várzea teórica e restrições a liberdades partidárias, a pluralidade de pautas que emergem das ruas e, mormente a intensidade do apoio popular, querem dar um aviso a seus governantes: o povo não aguenta mais ser expropriado pelo modelo de produção e pela gestão de riquezas dos empresários e do Estado de classe.

Confirmando a tese de que nos processos de luta social avançamos na consciência de classe, até à passagem do que Lenin chamará de "classe para si", verificamos a crescente participação política de atores até então anestesiados. E o mais fantástico de tudo isso é a superação surpreendentemente rápida de barreiras até então intransponíveis.

O debate do orçamento público vem alçando especial relevância para os manifestantes. A cobrança de um Estado maior, garantidor de direitos e de desenvolvimento social é a agenda das ruas. Nessa conjuntura, o debate da dívida brasileira (que consumiu cerca de 50% do PIB em 2012), ainda restrito à vanguarda dos movimentos no Brasil, tem significativo potencial para ser desenvolvido.

Nessa linha de avanços de consciência, também nos deparamos com as práticas radicalizadas adotadas pelos manifestantes, expressão da revolta com as condições de vida. Cercados pela mídia burguesa que advoga o direito de se manifestar "nos limites da ordem", a malta não se abateu com o estigma de "vândalos", ou, segundo a própria Dilma, "arruaceiros".  A velha tese ressurge: paz entre os povos, guerra contra os senhores. Não falamos da violência individual, combatida inclusive por Trotski, mas da radicalização coletiva, fruto do enfrentamento combativo à polícia repressora e da brutal interferência do interesse dominante no cotidiano dos trabalhadores. Nas manifestações no Brasil os cartazes dizem: violento é o Estado.

Em face da omissão e progressiva cooptação dos movimentos sociais pelo governo PT desde 2002, muitos são os passos a serem dados pela juventude compreensivamente despolitizada presente nas ruas. A tática é desmobilizar as manifestações alegando risco de golpe de direita. Cumpre reafirmar que o governo brasileiro é completamente servo do capital, privatiza, faz superávit primário para pagar a dívida pública, corta gastos com educação e reprime o movimento sindical. É, portanto, necessário à manutenção do status quo no Brasil e aliado da burguesia, não existindo qualquer risco de que sofra algum tipo de golpe.

Quanto às consequências do processo, até o momento, parciais vitórias foram conquistadas, como a redução do preço da passagem para autocarro em várias cidades. Mas, como dizem as palavras de ordem: "isso não é por 20 centavos". Na análise do economista Plinio Junior, "o tufão que revitaliza a luta de classes provocou a desnaturalização da economia, colocando em evidência o componente ideológico que oculta os interesses". Para as ruas, a vitória deve vir do lucro dos capitalistas e não do orçamento público.

Enquanto a economia brasileira desaquece (previsão de PIB em 2,5% para 2013), a pseudo-esquerda se desgasta no governo e o povo toma consciência rapidamente, uma resposta proporcional é esperada. O governo já anunciou reuniões com os estados, alguns investimentos em saúde, o dinheiro do petróleo do pré-sal para educação e um plebiscito para a reforma política.

Se o movimento espontâneo conseguirá delimitar suas bandeiras e a esquerda partidária acertará e será permitida como direção política do processo, são análises ainda impossíveis de serem feitas. Fato é que potencial de mobilização e disposição do povo, radicalidade, vontade de discutir e de conquistar as bandeiras que transformarão as condições de vida, não faltam às manifestações quase diárias, com milhares, em centenas de cidades. Porém, já há ganhos importantes aqui, vez que, na pior das hipóteses, após o episódio dessas últimas semanas, a luta de classes brasileira se fará em outro patamar na relação de forças.

 

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