Marcuse e a alienação do socialismo Versão para impressão
Terça, 02 Julho 2013

marcuse "A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores." Esse era o slogan de Marx, aliás muito comum no movimento operário do século XIX. Excetuando, nesse tempo, alguns pequenos grupos que idealizaram o socialismo camponês, depressa extintos, impôs-se pela evidência social, pela luta de classes realmente existente, que os trabalhadores antagonizavam a burguesia. Mais do que a perceção empírica do conflito entre o capital e o trabalho, o marxismo acrescentou a compreensão de que as mercadorias produzidas para o mercado escondiam trabalho não pago, o lucro. A socialização do excedente, do valor criado, através da "expropriação dos expropriadores", nomeou afinal o socialismo. Enquanto muitos, justamente numa base moral, denunciavam os abusos e a miséria da classe trabalhadora, o marxismo denunciou a exploração como categoria económica e daí extraiu uma teoria social alternativa ao capitalismo, acessível pela revolução e pelo poder dos trabalhadores. A importância de Marx neste contexto, e na atualidade, é de que em 160 anos não foi descoberta outra teoria coerente para superar o capitalismo na roda sinuosa da história social. Tivesse ela aparecido e Marx seria apenas mais um autor a estudar como Stuart Mill, ou Hegel, cujas filosofias marcaram a modernidade.

Ao longo do século XX, houve várias polémicas acerca da representação dos trabalhadores (teorias de partido), ou das alianças sociais dos trabalhadores com outras classes prejudicadas pelo capitalismo. A crítica e rutura de Lenine com os partidos social-democratas, tidos por assimilados ao parlamentarismo burguês, integrados no corporativismo capitalista e até apoiantes da "sua" burguesia na Guerra de 14/18, levaram à teorização de um partido não apenas revolucionário mas de vanguarda. Esse conceito de destacamento avançado dos trabalhadores transportou-se para a ideia de que era por intermédio do partido que se garantia a hegemonia do proletariado na aliança com os camponeses pobres e os pequenos proprietários urbanos, especialmente comerciantes e artesãos, no assalto ao poder da burguesia. De modo próximo, mas numa aceção mais frentista, Gramsci trouxe a visão do bloco popular que, aliás marcará a futura estratégia dos partidos comunistas sob o capitalismo. Ou aceitaram ou rejeitaram o frentismo social, mas ficaram até hoje reféns dessa marcação.

Agora a ideia de que o socialismo se podia fazer sem os trabalhadores é uma originalidade de Herbert Marcuse. Teoriza com grande alarde essa proposta que pareceria uma coisa contranatura nos anos 60 do século XX. A revolta estudantil do Maio de 68 em Paris amplificou imenso o eco de que os estudantes e intelectuais, quadros técnicos, liderariam a revolução e a fundação do socialismo. Notemos, porém, as circunstâncias em que este berlinense e cidadão do mundo, naturalizado americano, elaborou o seu argumento principal.

Marcuse estava muito empenhado no movimento anti-guerra no Vietname que se desenrolava nos Estados Unidos e esse movimento influenciou significativamente o seu pensamento. Nessa campanha pontificou, entre muita gente, Angela Davis, sua aluna, e ícone dos negros, comunistas e pacifistas. Conheci as ideias de Marcuse numa edição portuguesa de 69, da Moraes, intitulada "O Fim Da Utopia". A tradução usou este título de um dos textos do livro, provavelmente para evitar problemas com a censura, já que a denominação original, em alemão, era Psicanálise e Política. Pode perceber-se aí o seu entusiasmo pela desobediência civil, que os estudantes praticavam contra a guerra, tornada em meio de desagregação do poder burguês. Talvez com o mesmo calor com que outros no passado tinham defendido a insurreição, a greve geral revolucionária, ou a greve política de massas, ou a guerrilha, tudo sobre os modos da luta pelo poder. A desobediência civil não era nova como proposta, reconheça-se. Anos antes, Gandhi tinha-a popularizado como meio de luta pela independência da Índia mas tinha da desobediência uma compreensão aparentada à resistência passiva. Não era o caso em Marcuse onde se apontavam métodos ativos de confrontação.

E quem era o sujeito desta capacidade revolucionária? Leiamos o autor:

"A Nova Esquerda, além disso, de modo algum está circunscrita à classe operária como classe revolucionária, com exceção de pequenos grupos. Ela própria não pode ser definida sob o ponto de vista de classe, já que não forma uma classe definível. É constituída por intelectuais, por grupos de movimentos de direitos de cidadãos, pela juventude, e por outros que, à primeira vista não parecem nada políticos, como os hippies."[i] Mais adiante em "O Fim Da Utopia", depois de sugerir a incorporação revolucionária das minorias raciais e nacionais e os seus emblemáticos ghettos, Marcuse considera que a Nova Esquerda "se trata de uma oposição contra uma sociedade democrática e que efetivamente funciona, que normalmente, pelo menos, não trabalha com terror. E é – e nisso estamos completamente de acordo nos Estados Unidos da América do Norte – uma oposição contra a maioria da população, incluindo a classe proletária. É uma oposição contra a pressão sempre constante e sempre presente do sistema, que devido à sua repressiva e destrutiva produtividade degrada tudo desumanamente como se fossem mercadorias cuja compra e venda fosse um modo de vida e até mesmo um conteúdo de vida; oposição contra a hipócrita moralidade e os «valores» do sistema, oposição contra o terror fora da metrópole. Esta oposição contra o sistema tal como foi desencadeada primeiramente pelo movimento dos direitos do homem e, depois, pela guerra do Vietname"[ii].

Em 1973, num documento, também editado pela Moraes, sugestivamente designado por "Revolução e Reforma", faziam-se duas entrevistas paralelas a Marcuse e a Karl Popper, ainda sem a fama que este adquiriu posteriormente, como ex-marxistas promotores dessas duas posições, respetivamente. Curiosamente, HM repete, embora com a prevenção de não absolutizar, a mesma tese: "(...) é certo que a sociedade neocapitalista apresenta diferenças decisivas em relação a períodos anteriores. Estas diferenças residem principalmente naquilo a que chamei a integração da maioria da classe operária no sistema vigente, integração que, por sua vez, eu gostaria de limitar de qualquer modo, na sua forma mais nítida e expressa, à sociedade dos Estados Unidos da América. Semelhante integração da classe trabalhadora, que por vezes vai até ao ponto de se poder efetivamente designar a classe operária como um pilar do sistema – sobretudo no que diz respeito aos dirigentes dos sindicatos e ao apoio à política externa americana – esta integração – dizia – não é, de modo algum, apenas superficial ou ideológica"[iii]. Ninguém ignora que os principais sindicatos americanos estão tomados pela mafia ou o chauvinismo popular em relação a colónias, que nós portugueses conhecemos tão bem durante o fascismo. Mas desses factos não deriva a análise feita. Regista-se que a prevenção de Marcuse nesta entrevista, se prende com o facto de não poder desmentir o impacto do forte movimento operário europeu ocidental de 68 até aos finais de 70, especialmente nos países do sul. Em todo caso, ele assinala a tendência, com característica universal, europeia ou além Europa, embora não numa forma tão extrema como nos EUA. Ei-la "O neocapitalismo conseguiu, de facto, elevar o nível de vida da maior parte da população, em especial devido ao incremento extraordinário da produtividade. A maior parte dos operários, e, de qualquer forma, todos os operários especializados, vivem atualmente muito melhor que há alguns anos atrás. Em grande parte, participam realmente nas comodidades da chamada sociedade de consumo e é perfeitamente compreensível e justificável (e de maior eficácia que a doutrinação através da propaganda ou «brain-washing»), que não estejam dispostos a renunciar a estas vantagens relativas, para adotarem o «socialismo», como alternativa que constitui, para eles, ou uma utopia, se for considerado na sua pureza total, ou se se apresenta tal como existe, atualmente, na União Soviética e nos seus estados satélites"[iv].

Daqui se conclui que HM pensava que as conquistas económicas e sociais do proletariado o eliminavam de um papel transformador da luta de classes. Por isso, procurava não na estrutura de classes da sociedade, mas nos movimentos sociais outros atores "de classe não definível". Os "socialistas críticos" dos dias de hoje quando escrevem copiosamente acerca do socialismo com muitos atores, naturalmente como sempre, mas como uma etapa que sucede à erosão da centralidade do trabalho é a Marcuse que vêm beber, como vários outros o fizeram nas passadas décadas. Estes recusam-se a aceitar a ideia de que a centralidade do trabalho não é um menu à escolha, não é sequer uma categoria filosófica ou uma opção tática, é uma categoria económica enquanto o capitalismo for o capitalismo. A luta de classes existe porque há extorsão da mais-valia. As outras discriminações do capitalismo, de género, de etnia, de território, de nacionalidade, de ecossistema, de autodeterminação pessoal, todas elas já existiam antes do capitalismo triunfar como modo de produção. Espontaneamente, a luta oriunda dessas outras  discriminações combina-se com a contradição entre o trabalho e o capital que é aquela que move a política de todos os agentes da esquerda à direita. O sucesso da luta contra todas as opressões está, aliás, numa combinação sem hierarquias de todas essas causas.

A direita, no rescaldo da crise global do capitalismo de 2008, promove uma luta de classes de natureza planetária contra o trabalho, comprimindo salários e pensões, serviços públicos. Lamentavelmente, Marcuse não viveu o suficiente para lhe apresentarmos a troika como expressão máxima da desintegração da classe trabalhadora, de toda ela e não apenas dos trabalhadores da indústria. É claro que a simples conceção de que o socialismo possa existir sem a maioria social da classe trabalhadora parece paródica, mas não é. Alguns inventaram, a partir daqui, um tipo de solução: renunciaram à revolução, declararam o fim do imperialismo, arranjaram «uma classe não definível», a «multidão» a quem propuseram inventar novas formas de democracia, governos desde baixo para pacificamente superar a ordem de um império moribundo. Marcuse com pinceladas de Kaustky, nada inovador, portanto. Outros, com escolas diferentes, entenderam que, com mais ou menos desobediência civil, a solução é a revolução de «todos», uma classe não definível, contra o capitalismo agressor da vida e da natureza. Assim uma coisa «sem destino», eco-libertário. Ambas as saídas da equação incompleta de Marcuse insinuam-se nos movimentos sociais na disputa do pensamento progressivo. Uns e outros, referenciam-se, não exclusivamente, é certo, como pós marxistas. E isso tem ainda a ver com Marcuse, e muito.

O professor alemão fez parte da chamada Escola de Frankfurt, dos anos 30, onde diversos intelectuais de primeira linha coexistiram numa influência comum, com prospeções vanguardistas de relacionamento de conclusões da psicologia freudiana com o marxismo, ou das análises weberianas sobre a burocracia e o socialismo. Todos esses ensaístas tinham no entanto a predileção pela análise da alienação do trabalho, pela fetichização da mercadoria, e subestimavam a exploração da força de trabalho, em concreto. É conhecida a especulação à volta dos manuscritos de Marx enquanto jovem, tentando daí depreender um pendor humanista geral que seduzisse melhor os bons espíritos do que a cortante e massificadora luta de classes. A exploração da força de trabalho tem como lado externo dessa relação explorador/explorado a perda do objeto do trabalho a favor de terceiros, esclareceu nesse seu preceito Marx. Transpondo para o cenário social, existe por essa via um desapossamento da personalidade de cada um/a. Essa dimensão do trabalho pareceu a muita gente que igualava todos aqueles que dirigem o produto desse labor para o mercado que os aliena. A classe definível é pois mais difusa. O trabalho é pois foco de exploração e alienação. O socialismo de Marcuse é que foi alienado, não de destino mas de destinatários.

A ironia do temário de superar a geografia dos anos 60  por outra modalidade ilustremente desconhecida do socialismo é que os autores da moda nas análises de sociologia política são tributários dos anos 60. Creio que com rigor, embora com distanciamento das conclusões que a vida provou serem erróneas, a meu ver, Marcuse[v] merece respeito por ser a fonte do tema da extinção da centralidade de trabalho, a quem não faltam hoje seguidores.

Luís Fazenda

A Comuna. 30 (Abril-Junho 2013) 56-60

 

Notas e Referências

[i] Herbert Marcuse – O Fim da Utopia. Lisboa: Moraes, 1969. p. 86.

[ii] Opus cit. pag.90

[iii] Herbert Marcuse e Karl Popper – Revolução ou Reforma. Moraes,1974. p. 18.

[iv] Opus cit. pp. 18 e 19.

[v] Herbert Marcuse – Toward A Critical Theory of Society. New York: Routledge, 2001. (Reúne alguns dos principais textos políticos de Marcuse seguido de um posfácio de Jürgen Habermas).

 

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