O Cagaço e o Andaço - ou o fim da política Versão para impressão
Sábado, 13 Dezembro 2008

A emergência da crise do sistema financeiro, ou seja a crise do sistema capitalista, provocou uma curiosa reacção exorcista que aos poucos vai mostrando melhor os seus contornos.

A generalidade das figuras tutelares e dos comentadores avalisados avançou  com as suas boutades descontraídas e aparentemente ousadas - o fim do capitalismo, voltámos às nacionalizações não querem lá ver, o socialismo espreita, ah!ah!, quem diria. Mas a fidelidade a D. João II é mais forte  e  há que  enfrentar o mostrengo  assegurando que “aqui ao leme sou mais do que eu”, já que estamos em época de comemorações pessoanas. Portanto a confiança manifestada nas medidas dos governos para impedir o afundamento do barco movido pela especulação desenfreada e irresponsável e pelo crime económico, foi a pedra de toque que distinguiu todas as pessoas de bem, ou seja, as que confiam plenamente nas virtualidades da ordem assegurada pelo mercado desde que devidamente acompanhado dos mecanismos adequados de controlo que parece terem sido pouco eficazes ou, até, mesmo, insuficientes por, reconheça-se, enfim,um certo relaxamento e desleixo do sistema que não pode voltar a acontecer. Em frente e corações ao alto.

Mas, lá bem no fundo, no íntimo dessas inquietas e impolutas consciências, germina uma dúvida que afinal é uma certeza: esta coisa de finança não é apenas deixar cair ou sacrificar algumas personalidades do nosso convívio que exageraram e foram apanhadas na enormidade da onda. Afinal mexe mesmo com a economia e, portanto, mexe com a vida concreta das pessoas e, pelo andar da carruagem, vai dar sarilho, as consequências da crise são mesmo imprevisíveis.. E não há exorcismo que lhe possa valer.

E então assistimos a este fenómeno a que chamaria de contrição: os   mais denodados democratas, os arautos do direito à indignação, os defensores da participação cidadã activa como salvaguarda da democracia, os acusadores de dedo apontado à abulia cívica, de súbito, num movimento espontâneo e sem premeditação, cerram fileiras em defesa da ordem ordenada, da inimputabilidadet dos actos  a coberto da legitimidade de função derivada da eleição quadrienal.

Afinal que democracia é esta? Querem governar a partir da rua? Onde é que já se viu isto?  Acrescente-se agora e á posteriori: querem uma grécia não da democracia de Péricles, mas da violência anárquica a querer substituir-se ao comando do voto livre e ordeiro?

Mário Soares, apesar de tudo surpreendente, a condenar a condenação activa da política economicista (ou financista?) do Governo para a educação: o governo foi eleito há que respeitá-lo. Quem o viu a espreitar, codicioso, a revolta da ponte, e quem o vê.

Saramago, que deve ter uma má experiência com a esquerda em que se insere, pois que já disse que a esquerda é estúpida, com um discurso securitário e, pior que isso, fazendo apelo  à memória de Maio de 68, increpando o “é proibido proibir”, já que  nem tudo é permitido, pois claro. Jornais e jornalistas de mãos postas e coleira luzidia, a democracia não está na rua, a rua é para as manifestações e chega. A democracia está em S. Bento e em Belém.
Que se passa então?

A queda da máscara conspícua dos pilares da comunidade - banca,  governo, partidos burgueses - a falência da hegemonia da ideologia neoliberal, expuseram as entranhas de uma sociedade em revolta surda, ainda contida.
A crise grega a convocar, agora sim, a propósito, a memória da crise mundial de 68, com a  burguesia  mais vulnerável, num contexto de crise total de credibilidade das grandes instituições globais e regionais, veio conjurar as forças de reacção e acagaçar os denodados democratas que tinham no neoliberalismo uma apólice de seguro para o seu progressismo.

Perante a hipótese, mesmo que ainda  improvável, de rebelião das massas contra a mafia institucional, o crime económico, o desemprego, o desrespeito pela humanidade inscrita em cada pessoa, o confinamento da vida, o desprezo pelo protesto cívico, pelo “direito à indignação”, surge, para voltarmos noutra perpsectiva a Fernando Pessoa, “o mostrengo que está no fundo do mar”.

A domesticação da sociedade, na felicíssima expressão de José Gil, torna-se não apenas um obectivo do governo neoliberal mas de todos aqueles que sustentam a sua credibilidade democrática na debilidade do movimento de massas, em últimqa análise no fim da política.

Mas a retórica pseudo-democrática vai perdendo impacto. É tempo de lhe opor com veemência a exigência da democracia plena, em que a representatividade, directa ou delegada, é confrontada, sempre que a vida o imponha, pela  participação activa  que afirma  os inalienáveis direitos inerentes à própria cidadania enquanto pedra angular e parede mestra da sociedade e do Estado de Direito.
Mário Tomé
 

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