Dinossáurios autárquicos resistem à sua extinção |
Segunda, 21 Dezembro 2009 | |||
Nos passados dias 4 e 5 de Dezembro realizou-se em Viseu o XVIII Congresso da Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP) que reelegeu, pela terceira vez, Fernando Ruas como presidente. Os autarcas exigiram a revisão da Lei das Finanças Locais, a revisão das regras do QREN e mais competências. Fernando Ruas, na sua luta de “estimação” contra o Ministério do Ambiente, exigiu a transferência de competências para licenciar mini-hídricas e pedreiras. Quanto às mini-hídricas, duvido que essa competência tivesse salvo um dos lugares mais paradisíacos do concelho de Viseu: a “praia fluvial” natural da Ponte Vouguinha, destruída pela construção de uma dessas centrais de fio-de-água que muitas vezes reproduzem, à escala, os problemas provocados pelas grandes barragens, como os obstáculos intransponíveis para os peixes. Já quanto às pedreiras compreende-se que queira preservar o arsenal...para poder continuar a instigar os presidentes de Juntas de Freguesia a correr à pedrada (“em sentido figurado”, disse Ruas, no Tribunal que o condenou) os vigilantes da natureza do Ministério do Ambiente. Mário de Almeida, presidente da Mesa do Congresso da ANMP e presidente da Câmara de Vila do Conde, do PS, exigiu a realização de um referendo sobre a limitação de mandatos dos autarcas, que Fernando Ruas também considera ser antidemocrática por achar que “não há relação directa entre número de mandatos e corrupção”. Acontece que 58% dos portugueses acham que é no poder local que existem mais subornos e abusos de poder (embora 64% coloque em primeiro lugar o poder central), segundo um estudo da Comissão Europeia publicado em 9.12.2009, Dia Mundial Contra a Corrupção. Adelino Ferreira Torres, Valentim Loureiro, Fátima Felgueiras, Isaltino Morais e outros talvez não sejam alheios a esta percepção. A própria P.J. revelou, em 2006, que mais de 40% dos crimes de corrupção que investiga envolvem autarquias. Fernando Ruas e Mário de Almeida esquecem que a limitação de mandatos é um princípio republicano que se opõe ao risco de perpetuação do poder, mais ou menos absoluto, e à consequente rede de clientelismos. O facto de terem sido eleitos não os torna imunes à corrosão da democracia, sempre que o poder se prolonga no tempo. Os legisladores de 1976 não o previram as consequências da não limitação de mandatos, mas preveniram a continuidade das relações de poder anteriores ao 25 de Abril com a instituição de um sistema de representação baseado no pluralismo dos executivos autárquicos. Contra este equilíbrio levantou-se, em 2005, o PS, ao propor executivos monocolores, isto é, já não com representação proporcional de vereadores, mas antes unipartidários, limitando o debate político. Limitação que seria tão mais grave quanto as Assembleias Municipais não têm verdadeiro poder de controlo e de fiscalização da acção dos executivos municipais. A este propósito, Fernando Ruivo, Coordenador do Observatório dos Poderes Locais do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, escrevia no jornal Público de 15.05.2005 o seguinte alerta, num artigo intitulado “A blindagem do sistema político local”: “O poder «democrático» quase absoluto do presidente da Câmara virá reforçar o enfraquecimento da acção colectiva local, da comunicação, fiscalização e transparência política, conduzirá à intensificação da hipertrofia do voto em detrimento de outras formas de participação política, bem como a uma indesejada autonomização do patamar político em relação à sociedade civil.” Ora, o que é dramático é que não tendo o PS conseguido impor este absolutismo autárquico, chegámos praticamente ao mesmo nível de défice democrático, em municípios como Viseu, devido à fragilidade da oposição no executivo e à arrogância autocrática do PSD local. No seu livro “O Estado Labiríntico”, Fernando Ruivo analisa assim a relação entre os poderes políticos e económicos: “A longevidade política do eleito local, como se depreende por outro lado, tenderá a depender também muito mais do seu capital relacional, da materialização de apoios, do que propriamente de ideias, inovações e programas. Tais apoios poderão ser de índole diversa, mas, em muitos concelhos, o entendimento entre variados interesses económicos e um determinado fechamento reticular pode conduzir á possibilidade de uma gestão autárquica em boa parte conduzida, controlada ou orientada, de fora dos Paços do Concelho (...)”. Em seguida F. Ruivo transcreve uma passagem de uma entrevista a uma ex-deputada à Assembleia da República que lhe conta que no seu concelho “o poder económico intervém na eleição da própria autarquia. O que depois se passa é uma teia de cumplicidades que pode arrasar o que está ao lado. (...) Ali, em (Concelho), se um candidato não é apoiado por A, B ou C, não tem hipóteses nenhuma de chegar à Câmara, e esses A. B. ou C são precisamente aqueles que dominam economicamente, que têm dinheiro e pagam a candidatura. Depois, obviamente que surgem cumplicidades em determinadas situações...” Permitam-me outra citação. Desta feita, de Pedro Almeida Vieira, engenheiro biofísico e escritor, Prémio Nacional de Ambiente “Fernando Pereira”, autor do livro “O Estrago da Nação”(2003): “Durante as últimas duas décadas, o Portugal ambiental transformou-se, à mão das câmaras municipais, numa amálgama de problemas que, em vez de envergonharem os seus responsáveis, ainda lhe deram mais alento para distribuir promessas durante as campanhas eleitorais. (...) Mesmo havendo honrosas excepções, olha-se para o país e pergunta-se: quem é responsável, quem autorizou e quem não evitou a construção desenfreada? Quem não fez espaços verdes e equipamentos culturais e de lazer? Quem promoveu insegurança nos centros urbanos ou as deficiências no saneamento básico? Quem permitiu que o mundo rural desaparecesse e as cidades ficassem sufocadas pela confusão? Quem evitou ou recusou debate público sobre estratégias de desenvolvimento local e regional?” Temos que reconhecer que os autarcas, de um modo geral, também fizeram muita obra essencial. Aliás é para isso que os elegemos e lhes pagamos os ordenados com os nossos impostos. O poder local democrático é uma herança do 25 de Abril, mas, tal como muitas outras conquistas de Abril vítimas de paulatina e sub-reptícia involução, se não soubermos exigir mais rigor e transparência nos actos públicos e formas de exercer uma efectiva participação dos cidadãos na gestão da sua cidade, arriscamo-nos a acordar um dia manietados por mil fios, tal como Gulliver em Liliput, atados por minúsculos Berlusconis. E, nessa altura, talvez não tenhamos hipóteses de deitar a mão nem a pedras nem a catedrais em miniatura (em sentido figurado, claro!). Carlos Vieira
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A Comuna 33 e 34
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