Um caso bicudo Versão para impressão
Sábado, 29 Agosto 2009
O triunfo da revolução industrial aliada ao predomínio do pensamento e organização liberal da sociedade marcaram o virar da história mundial e como tal a afirmação da burguesia como classe hegemónica.

Artigo de Fabian Figueiredo

A moderna sociedade burguesa, saída do declínio da sociedade feudal, não aboliu as oposições de classes. Apenas pôs novas classes, novas condições de opressão, novas configurações de luta, no lugar das antigas.

A nossa época, a época da burguesia, distingue-se, contudo, por ter simplificado as oposições de classes. (MARX, Karl in Manifesto do Partido Comunista)

As novas condições socio-económicas que o triunfo da burguesia impôs, trouxeram novos paradigmas e contradições para a ordem do dia, a sociedade industrial burguesa desfez-se da organização de ordens sociais fazendo imperar apenas duas classes. Desta nova organização social brotaram novas regras económicas e sociais

Rasgou sem misericórdia todos os variegados laços feudais que prendiam o homem aos seus superiores naturais e não deixou outro laço entre homem e homem que não o do interesse nu, o do insensível "pagamento a pronto".” (ibidem)

Os velhos súbditos e vassalos foram substituídos por patrões e assalariados, o camponês preso à terra procura melhor rumo na cidade e o velho aristocrata desacreditado com o novo padrão cultural vigente é reformado pela burguesia patronal.

Mas como é sabido não houve revoluções burguesas sem um proletariado reivindicativo e com vontade de se soltar das amarras feudais, desde da revolução liberal americana à francesa e à portuguesa, foi sempre assim. O que fez com que no triunfo das revoluções a burguesia sentisse a necessidade de atribuir liberdades aos trabalhadores, mesmo que (e essencialmente nesta época) ilusórias, que permitiu ao movimento operário organizar-se em sindicatos e em partidos.

É neste enquadramento histórico, onde perduram fortes antagonismos de classe aliados a uma crua exploração capitalista – promotora de injustiça social - que nascem as reivindicações de várias correntes de opinião que marcarão o pensamento socialista.

Os primórdios do pensamento socialista ficaram marcados pela fragilidade ideológica, que na verdade não passavam de reflexões sentimentais e éticas sobre a situação social dos trabalhadores do século XIX, não é por acaso que ficaram denominados na história como utópicos e românticos.

Apenas nos meados do século XIX com a publicação do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels lançam-se os princípios sólidos para uma ideologia - baseada no apelo à luta de classes, no internacionalismo operário e na superação do capitalismo através de uma revolução socialista que impusesse o comunismo como sistema promotor da igualdade e destruidor das crispações de classe - que fosse influenciar radicalmente o pensamento socialista e o movimento operário.

Com o triunfo do pensamento marxista sobre os utópicos, proudhinistas, blanquistas e anarquistas, o avanço do socialismo científico de Engels e Marx torna-se notório, sendo que em 1879 o Congresso Operário Internacional adoptou maioritariamente o marxismo como ideologia. A partir de 1890 o socialismo e os partidos operários que dele se reclamavam conheceram uma enorme expansão por toda a Europa Ocidental e Central. 

Mas apesar do esforço conciliador da 2ª Internacional as cisões fizeram-se se sentir no movimento operário; por um lado os marxistas – que condenavam qualquer pacto ou aliança com o regime, por outro os reformistas que viam com bons olhos um pacto com o regime para o mudar por dentro.

É neste contexto que nasce a social-democracia (que se afirmará essencialmente no século XX) que refuta a luta de classes e a conquista violenta do poder, procurando antes a conquista do voto operário para fazer reformas e mudar pacificamente o sistema capitalista.

Esta cisão originará várias fracções nos partidos e movimentos socialistas opondo em muitas frentes revolucionários e reformistas – o SPD é o grande exemplo desta realidade.

Porém a esquerda revolucionária herdeira do marxismo reforça-se com o horizonte que nasce na Rússia soviética de Lenine, tornando-se uma referência para quem almejava o socialismo.

Com a queda do Muro de Berlim e de todo um sistema que acabou por não criar uma sociedade mais igual e democrática, a esquerda revolucionária entra em depressão; os mais perspicazes entram em reflexão ideológica profunda – reconhecendo que é preciso produzir nova teoria e alternativa aos sistemas soviéticos – os monolíticos tentam aldrabar os factos e a história.

Por outro lado a Social-Democracia responde à grande depressão com o Estado-Providência, que na Europa se fará sentir a partir da metade e no pós II Guerra Mundial, reforça a sua hegemonia política no Ocidente com largo apoio popular.

O welfare state  garantiu por um lado o funcionamento do mercado e a defesa dos direitos dos públicos na saúde, educação e alimentação. Este acordo tripartido (sindicatos, patrões e Estado) conhece a sua expansão durante os 30 gloriosos anos.

A partir da crise de petróleo de 1973 e com o triunfo do neoliberalismo de Tatcher e Reagan, assiste-se ao desmantelamento do Estado-Social e a um claro triunfo da direita, ao qual a tradicional Social-Democracia irá responder no final do século XX com uma reconversão ideológica: a terceira via de Guiddens e o social-liberalismo; que até hoje é triunfante nos governos e no pensar dos Partidos Sociais-democratas e Socialistas.

Portanto torna-se pertinente analisar algumas “frentes” à esquerda que possuem visões ideológicas dispares:

A Internacional Socialista – herdeira da tradição social-democrata – deixou cair o discurso anticapitalista, preferindo transferir para o seu seio os interesses do poder económico e comportar-se governativamente de forma semelhante a qualquer partido democrata-cristão. A economia de mercado, a democracia liberal, a obediência ao imperialismo da OTAN e da guerra são incontestadas, como tal não apresentam de forma alguma alternativa ao estado do situacionismo.

Os ortodoxos ainda hoje obedientes ao “modelo soviético”, mantêm-se “fiéis” à ditadura do proletariado, ao partido único, ao controlo dos sindicatos e ao centralismo democrático. Pouco aprenderam com a realidade concreta, o que demonstra a ausência de uma visão materialista e dialéctica. Tudo é “certo e exacto” na sua visão de fé; o modelo soviético continua a ser a alternativa ao capitalismo e às suas novas formas de organização e domínio.

Por último, a Esquerda que aprendeu com a queda do muro, e ideologicamente lhe passou por cima, que rejeita o reformismo, as cedências ao neoliberalismo, os autocolantes Lenine prontos a consumir, tem a tarefa mais árdua, tem que pensar. A social-democracia já o fez e tomou o seu rumo, que é claro. A esquerda ortodoxa não reflecte, preferindo ser uma fortaleza que vai lentamente perdendo soldados.

É nesta Esquerda que se afirmou com mais ou menos sucesso em variados sítios do globo, é aqui que surgem os problemas e as dúvidas, é aqui que o gato foge da água, que rumo para o Poder? Que Poder? E para quê? Que Sociedade? Que Economia?

A conquista do Poder por parte da esquerda socialista deverá ser diferente da mitologia da tomada de posse do Palácio de Inverno. A conquista da maioria social para uma maioria de esquerda governativa deve ser o caminho para uma mudança, que só se fará longe de um entendimento com a esquerda que cedeu ao liberalismo.

Toda e qualquer conquista de Poder não poderá abafar liberdades individuais – liberdade expressão, religião, informação, sexual, género (…) democracia - ( o que nos separa dos ortodoxos) e terá que ampliar direitos públicos (o que nos separa dos sociais-liberais), portanto o direito à associação, ao multipartidarismo, à greve, à manifestação (…) aos serviços públicos universais e gratuitos de qualidade – ao que corresponde propriedade pública.

Uma Assembleia Constituinte que consagre todos os direitos e conquistas é uma necessidade emergente para um novo Estado, uma nova Sociedade e uma nova Economia. Um Estado que consagre os direitos de quem trabalha, que respeite as diferenças, e que promova um sistema político participativo, que corrija os défices da democracia representativa. Uma Sociedade onde se não se promova a exploração, uma Economia virada para as pessoas, onde o Estado seja o motor da mesma, onde se conjugue a propriedade cooperativa, pública e privada – que se afaste da selvajaria do capitalismo e do fracasso do totalitarismo soviético; onde a concorrência seja substituída pela associação e o esbanjamento pela planificação.

Toda a mudança terá que ser radical, porque as condições de exploração são também elas radicais.

Será quando as pessoas quiserem que seja. Sem elas, nada se fará. A revolução social terá a oposição de poucos, mas dos mais poderosos. É por isso que é preciso inverter a balança, para pôr termo a meia dúzia de grãos possantes que mandam numa praia inteira.

A mudança que se almeja reflectirá sempre as condições e as reacções que este mesmo causará, e terá de ser antecedido com vontade de defender reformas estruturantes nas instituições, que abrem caminho para a mudança e alargam a consciência das pessoas.

 

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