Elas trabalham mais 16 horas semanais em casa do que eles – um indicador que peca por defeito Versão para impressão
Segunda, 29 Junho 2009
No Público de 19 de Junho, uma pequena notícia dava conta de uma realidade há muito conhecida – as mulheres trabalham semanalmente mais 16 horas em tarefas de apoio à família do que os homens. O estudo noticiado não tem nada de novo, a não ser pecar, decerto, por defeito. Trata-se de uma média e, como tal, oculta situações de mulheres de sectores sociais mais desfavorecidos, em especial de mulheres imigrantes. Para sobreviverem, estas têm de ter dois e três empregos, mal pagos e sem direitos, para além de gastarem horas e horas em transportes para as periferias onde vivem e acumularem em casa o mesmo tipo de trabalho que durante o dia andaram a fazer nas casas de outras mulheres.
Artigo de Manuela Tavares

Acontece que a realidade das mulheres imigrantes é ainda ignorada pelas estatísticas e pela análise que é feita da situação das mulheres em geral.

Quando nos anos setenta, o “feminismo negro”, ganhou força e acusou o feminismo ocidental de ser um “feminismo branco”, que não tinha em consideração os problemas das mulheres negras, esta crítica continha em si as actuais questões, que se prendem com as dificuldades dos feminismos abordarem e integrarem os direitos das mulheres imigrantes. Pode não se tratar de uma prática de exclusão, mas de uma “falta de atenção” para com as mulheres que, vindas de outros países, têm problemas que não são tidos em conta no discurso feminista. É significativo que, em Paris, as jovens das comunidades imigrantes tenham sentido necessidade de se constituir como um grupo autónomo. (COLLIN, 2005:187). “Ni putes, ni soumises” foi o título do manifesto, que juntou na “Marcha das mulheres dos bairros pela igualdade e contra o gueto” cerca de 30 mil pessoas, nas ruas de Paris a 8 de Março de 2003. As jovens envolvidas na preparação da Marcha insurgiram-se contra as agressões masculinas de que eram vítimas, culminando em muitas situações em violações colectivas ou até na morte, como aconteceu com uma jovem de 18 anos, em Outubro de 20021

Do manifesto anteriormente referido pode ler-se: “ Somos mulheres dos bairros e decidimos deixar de calar as injustiças que vivemos. Recusamos que em nome de uma «tradição» ou de uma «religião» se silencie a violência que estamos condenadas a suportar e a sofrer. (...) Denunciamos o sexismo omnipresente, a violência verbal e física, a sexualidade proibida, a violação na sua versão moderna de violações colectivas, o casamento forçado, a factura de guardiãs da honra da família e dos bairros encarcerados. Denunciamos tudo isto para deixar de ceder à lógica do gueto, que nos encerra na violência sem que nada se faça contra ela”2.

Um outro documento denominado “Proclamação nacional das mulheres dos bairros lamenta que o “movimento feminista tenha desertado dos bairros”. E acrescenta: “Para nós, a luta contra o racismo e a exclusão e a luta pela nossa liberdade e emancipação são um único e mesmo combate (AMARA, 2004:151-152).

Em Portugal, a crescente feminização da imigração3  não tem conduzido à formação de associações específicas de mulheres imigrantes e os seus problemas continuam muito invisíveis, apesar de algumas mulheres se terem destacado como dirigentes de associações de defesa dos direitos dos imigrantes, como é o caso da SOLIM.

A tendência é para aumentar o número de mulheres imigrantes em Portugal e em outros países europeus, pois “as mulheres são as principais vítimas da pobreza a nível mundial”4. O número de mulheres que imigram sozinhas tem vindo a crescer em Portugal.
 
Esta é também a tendência a nível mundial. Segundo o Relatório de 2006 do Fundo das Nações Unidas para a População5,  as mulheres constituem quase metade (49,6%) dos 191 milhões de migrantes. São 95 milhões de mulheres espalhadas pelo mundo com falta de direitos, vítimas de escravidão ou de tráfico. As profissões assumidas são sobretudo “femininas”: os trabalhos domésticos e de limpeza, o cuidado com crianças, doentes ou idosos. “Muitas são exploradas, mantidas em cativeiro, maltratadas física e psicologicamente. (...) Como trabalham em casa, acabam por ficar isoladas, muitas não aprendem a língua, os patrões apreendem-lhes os passaportes, ou estão ilegais”6.

Em Portugal, no que respeita à inserção laboral e profissional das mulheres imigrantes, e tendo em consideração os três grandes grupos de imigrantes com origem nos PALOP7,  no Brasil e na Europa do Leste, verifica-se que as mulheres africanas ocupam profissões pouco qualificadas de empregadas de limpeza em casas particulares e escritórios8,  sendo que este tipo de emprego também é muito ocupado pelos outros sectores de mulheres imigrantes. Contudo, as mulheres da Europa de Leste também têm peso como operárias e artífices, assim como trabalhadoras de restauração e alojamento. Em relação às brasileiras, para além dos sectores profissionais anteriormente apontados, destaca-se o de vendedoras e demonstradoras. Destes três grupos de imigração aquele onde existe maior desadequação entre o tipo de emprego e a qualificação académica é o das mulheres da Europa de Leste e também no caso das brasileiras em relação a algumas profissões. No geral, as imigrantes ocupam os sectores mais desqualificados e mal pagos, com horários de trabalho muito longos9.  Conseguir um contrato de trabalho para renovar a Autorização de Permanência (AP) é também um dos grandes problemas com que estas mulheres se defrontam, devido à enorme precariedade do seu trabalho.

Segundo a socióloga Karin Wall as mulheres imigrantes “estão mais sujeitas a pressões e agressões, assédios, ameaças, chantagens por parte dos empregadores. Aliás vivem muitas vezes com uma família, em casa da qual cuidam de um idoso dependente. A sua rede de contactos e de apoio é muito limitada. Se estiverem ilegais, ainda pior”10.    

Nos últimos anos, muitas mulheres da Europa de Leste começaram a imigrar sozinhas para Portugal deixando as suas famílias nos países de origem. Muitas delas têm altas qualificações académicas e passaram a trabalhar como empregadas de restaurantes ou empregadas domésticas. Sujeitas a redes de tráfico, as vidas de muitas delas são de uma enorme amargura.
 
A realidade vivida pelas mulheres imigrantes não pode ser ignorada por quem tem responsabilidades políticas na transformação da sociedade.

 


  • 1. Sohane foi queimada viva num sótão do bairro de Vitry-sur-Seine (Cité Balzac) a 4 de Outubro de 2002.
  • 2.   “Manifesto das mulheres dos bairros: «nem putas nem submissas», in AMARA, Fadela (2004), Ni putas, ni sumisas, Madrid, Editiones Cátedra, pp. 151-152.
  • 3. Segundo dados do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), 45% dos 446.178 imigrantes que residem legalmente em Portugal são mulheres; esta percentagem tem vindo a subir de 41,5% em 1995, para 44% em 2001 e 45,36 % em 2005. Note-se que nestes dados não se incluem as imigrantes com autorização de permanência, por não existirem estatísticas desdobradas por sexo. O SEF tem dois tipos de caracterização de estrangeiros: os que possuem autorização de residência (AR) e os que possuem autorização de permanência (AP). 
  •  4. SERTÓRIO, Elsa, PEREIRA, Filipa S. (2004), Mulheres Imigrantes, Lisboa, Ela por Ela, p. 77.
  • 5.  Relatório das Nações Unidas sobre a Situação da População Mundial, 2006: “Passagem para a Esperança: Mulheres e Migrações Internacionais”.
  • 6. WONG, Bárbara, “Relatório da ONU sobre a população no mundo: mulheres migrantes são principais vítimas de tráfico e exploração”, in Público de 7 de Setembro de 2006, p. 2.
  • 7.   Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa.
  • 8.  49,5% das mulheres dos PALOP são “trabalhadoras não qualificadas dos serviços e comércio”; 31,7% das mulheres do Leste Europeu pertencem também a esta qualificação profissional, o mesmo acontecendo com 20,9% das brasileiras. (Dados do INE, 2001)
  • 9.  GONÇALVES, Marisa, FIGUEIRO Alexandre (2005), “Mulheres imigrantes em Portugal e mercado de trabalho: diferentes percursos, inserções laborais semelhantes”, in Imigração e Etnicidade: vivências e trajectórias das mulheres em Portugal, Lisboa, SOS Racismo, pp. 63-83.
  • 10.  Entrevista realizada pela jornalista Andreia Sanches a Karin Wall, publicada no Público de 2 de Novembro de 2005, p. 23.

 

 

 

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