O Projecto Farol é um Think Tank lançado em Dezembro de 2008 por iniciativa da Deloitte, na comemoração dos seus 40 anos em Portugal. O Projecto usa uma linguagem muito cuidada – vê-se que pretende ser atraente -, diz-se da «sociedade civil» e tem «em vista o desenvolvimento e o progresso de Portugal (…) no quadro da globalização». O manifesto fundador afirma-se «independente (...) não se quer alinhado por qualquer escola ou tendência de pensamento social ou económico» mas está comprometido «com as políticas que reconhecem no modelo de economia de mercado, a forma mais eficiente de criar riqueza e elevar os níveis de bem-estar social».
Os “benfeitores”, que tão preocupados estão com o nosso bem-estar, são dirigidos por uma Comissão Executiva composta por Luís Magalhães (presidente do CA da Deloitte, que fez parte do Compromisso Portugal), Jorge Marrão (economista associado da Deloitte), os “benfeitores” Belmiro de Azevedo, Daniel Proença de Carvalho, Brandão de Brito (professor do ISEG e bloguista do 4R), Manuel Alves Monteiro (ex. presidente da Euronext Lisboa). A Comissão Executiva do Projecto tem ainda outro bloguista do 4R e ex-deputado do PSD, António Pinto Cardão, economista, que na legislatura anterior conseguiu a proeza de apresentar 9 projectos-lei – todos de elevação de aldeias a vilas, 8 delas no concelho de Paredes -, uma enorme simbiose de política com amor à terra, portanto!
O Projecto desenvolveu, durante 2009, «trabalhos preparatórios» com António Mexia, João Talone, Vítor Bento, António Vitorino, Campos e Cunha, João Salgueiro e muitos outros ilustres “benfeitores de reconhecido mérito”.
Em 27 de Maio de 2008 foram lançadas as conclusões preliminares. As definitivas serão em breve divulgadas e então objecto de análise mais detalhada n' acomuna.net. Nas conclusões preliminares – intituladas de imperativas, note-se bem - há algumas que merecem umas primeiras farpas:
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- A necessidade de uma «cultura de Mobilidade para o mundo, para a empresa e para a sociedade» que vise «promover a mobilidade dos cidadãos portugueses qualquer que seja a sua posição no tecido social» instituindo incentivos mas também «sanções privadas e sociais (por exemplo, mudança de habitação de região, país, emprego e escola) devem ser revistos por forma a reduzir os obstáculos e a promover a experiência da mobilidade». No fundo pretende-se continuar o caminho aberto pelo Código de Trabalho de transformar o trabalhador em instrumento de total obediência à empresa, deslocado para qualquer ponto do país e do estrangeiro por mera e única vontade patronal.
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- A «criação de uma Comissão para a Produtividade como organismo independente que constitua um corpo de investigação e aconselhamento para elaboração de melhores políticas de produtividade do capital e trabalho e promova a aceitação das mudanças necessárias às reformas microeconómicas e ajustamentos estruturais». Mas melhor: a dita «Comissão terá poderes para exigir respostas do governo em matéria de concorrência considerada desleal do sector público», às recomendações que a Comissão lhe dirigir. Ou seja, a Comissão assumiria poderes próximos dos poderes presidenciais, em nome da “independente” tecnocracia neoliberal, violando elementares regras do sistema democrático, violando a Constituição da República.
Acresce, os “benfeitores” do Projecto Farol não querem o sector público a fazer concorrência ao sector privado pois o futuro das privatizações, da destruição dos serviços públicos e do papel social do Estado assim o necessita. Os defensores da concorrência entre privado e público já estão a passar a uma nova fase, por certo em consonância com Passos Coelho e António Vitorino, para construir a argumentação que sustentará uma mais fácil aniquilação dos serviços públicos. Para eles já não está em causa garantir ao sector privado «condições de concorrência» com o público – já se passou à fase de impedir o sector público de fazer concorrência em nome dela ser «desleal».
Relevante é também o conceito de «comissão independente» como se qualquer organismo não tenha ideias, conceitos, posições ou interesses e tudo isso não expresse uma posição de classe. Para este projecto, o Estado – mesmo o capitalista – pode ser um obstáculo à livre iniciativa privada e como tal anulam-se esses obstáculos.
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- Por certo inspirados no modelo chinês, este Think Tank pretende a «criação de diferentes zonas económicas virtuais, de zonas demarcadas de crescimento e emprego e do estatuto de empresa ZDCE» que, em consequência, beneficiarão de «alterações legislativas quanto a diversos custos de contexto, a saber: flexibilidade laboral; tributação sobre o financiamento, investimento, captação e retenção de capital e talento; licenciamentos, actos administrativos e autorizações públicas; regime mais favorável em diversos impostos» ... Os seja os "benfeitores" querem mãos completamente livres para o negócio, querem a anulação do mais insignificante e elementar papel do Estado em nome do sacrossanto negócio e mais uma vez produzem uma violação das normas constitucionais.
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A flexibilidade é, pois, uma das palavras chave de todo este projecto. É assim que são defendidos, pasme-se, «princípios “à medida” para responder à diversidade de situações requeridas pelas empresas e colaboradores, aumentos salariais em função do valor criado para a economia, diferentes formas e horários de trabalho compatíveis com uma economia de diferenciação e mobilidade, incentivos públicos e privados para o crescimento do número de horas trabalhadas, sem extensão do horário de trabalho»...
Ou seja, o Projecto defende que as já débeis leis de trabalho possam ser torpedeadas à medida das entidades patronais, que a organização colectiva dos trabalhadores seja aniquilada pois nem para a luta salarial teria a sua justificação, que o salário esteja dependente dos critérios neoliberais de valor e que o trabalhador enquanto mera extensão da máquina – enquanto unicamente peça acéfala de capital fixo – tenha a sua vontade anulada pela vontade do patrão.
Estas são algumas das medidas - imperativas - que este projecto defende. Elas exprimem a anulação da humanidade do trabalhador, uma regressão generalizada dos direitos sociais e uma regressão constitucional e jurídica que exprime como único critério o direito burguês à propriedade e à exploração.
A luta ideológica vai acirrar-se nos próximos tempos. De um lado parece emergir uma direita, mais reaccionária e mais populista, que sentindo as portas abertas pelo social-liberalismo se sente à vontade para tentar fazer recuar cem anos as relações sociais entre classes. Do outro, um PS acantonado numa táctica de propaganda sobre o papel social do Estado enquanto lhe vai socavando os pilares.
Estas breves farpas são apenas meros elementos motivadores da leitura crítica deste projecto burguês e dos desafios que nos colocam. O programa segue dentro de momentos.
Victor Franco
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