Em entrevista à revista do Instituto Humanitas [que publicamos na íntegra], o Prof. Ricardo Antunes coloca sua análise das eleições no Brasil e diz que os resultados de Marina não são mais do que um fenómeno "mais ou menos assemelhado ao que aconteceu em 2006. Naquele ano a Heloísa Helena teve quase sete milhões de votos, com uma candidatura mais à esquerda do que a da Marina".
IHU On-Line – Chegamos ao segundo turno, conforme alguns analistas, a partir do surgimento do fenômeno Marina. Como o senhor analisa esse fato?
Ricardo Antunes – A Marina não configura-se como um fenômeno. Ela teve um bom desempenho eleitoral, mas um fenômeno mais ou menos assemelhado aconteceu em 2006. Lembre-se que naquele ano a Heloísa Helena teve quase sete milhões de votos, com uma candidatura mais à esquerda do que a da Marina. Isso quer dizer que, embora haja uma tendência de “norte-americanização” da política brasileira, fazendo uma metáfora a um processo eleitoral onde há dois partidos que tendem a se alternar no poder, no caso brasileiro ora o PT ora o PSDB com seus leques de alianças. Em 2006 tivemos um quadro onde havia um contingente razoável de eleitores que no primeiro turno disse que não estava em consonância com esta dualização do processo eleitoral.
Era muito previsível que Marina fosse, nessas eleições de 2010, o escoadouro ampliado deste leque de descontentamento em relação ao dualismo eleitoral. Isto porque Marina tem um largo passado de militância social e política no movimento ambientalista e no PT. Ao romper com o governo Lula e sair do Ministério do Meio Ambiente (de modo tardio e pagando um preço muito alto), Marina cacifou-se como capaz de ser o escoadouro desse descontentamento ao dualismo eleitoral, porém com algumas diferenças em relação a 2006. Marina agora assumiu uma posição de defesa da questão ambiental dentro da ordem, compondo com forças muito conservadoras. Pelo seu passado de luta e pelo seu presente de acomodação dentro da ordem e com uma proposta ambientalista moderadíssima, ela herdou esse descontentamento e esse voto contrário ao dualismo eleitoral.
Mas é importante termos claro que tivemos, no total de eleitores, quase 35 milhões de votos entre nulos, brancos e abstenções. O que também é uma manifestação multiforme, porque estes “não-votos” representam um descontentamento grande. Por último, havia ainda uma quarta candidatura, que foi de Plínio, que herdou uma parte pequena do voto dissidente, mas com uma diferença: Plínio saiu candidato, desde o início, com o compromisso de dizer o que precisava ser dito sem fazer qualquer concessão midiática para fazer voto.
IHU On-Line – E o avanço de Marina também foi responsável pelo debate chamado agora de “a favor da vida” e contra a união civil homossexual. São esses temas que vão definir o segundo turno?
Ricardo Antunes – Marina é uma mulher valorosa no passado, mas hoje tem posições conservadoras. Ela tem sido abertamente contra a descriminalização do aborto, o máximo que ela disse é “vou aceitar um plebiscito”. E sabemos que essa é uma bandeira decisiva. Ser contra a criminalização do aborto é vital para as mulheres terem autonomia e o direito de decidirem sem o imperativo constrangedor legal e um masculino que imponha a decisão no espaço do lar. A mulher tem que ter o direito de decidir sobre seu corpo e sua vida. Qual dos atuais candidatos tomou essa posição? Dilma passou longe. Serra é o exemplo mais evidente da caricatura, ele parece um senhor que carrega uma bandeira defendendo a tradição, a família e a propriedade com sua cara sisuda. Marina, com sua candura, defendeu uma posição assemelhada. O único que, apesar de ter uma formação dentro da esquerda católica, teve uma clara posição corajosa a favor da descriminalização do aborto foi Plínio, junto com candidatos do PCB e do PSTU.
Agora, porque esse assunto da direita conservadora está tomando um espaço importante no espaço eleitoral? Os dois candidatos têm projetos econômicos muito assemelhados. Todos nós sabemos que o grande mérito do Lula foi ter roubado a política econômica do PSDB e fez isso melhor do que eles. A política econômica do PT qual foi? Superávit primário, com uma diferença: O governo Lula foi mais rígido, ampliou mais o superávit primário. Além disso, o governo Lula remunerou os juros de forma semelhante ao governo FHC e toda sua política desestabilização monetária foi uma continuidade do plano Real. O governo Lula remunerou o capital financeiro, o grande capital produtivo e a agroindústria como ninguém. Portanto, o grande capital está contente com a política de Lula. É preciso atentar que vivemos um período de avanço do pensamento de extrema direita e do pensamento conservador em amplitude global.
IHU On-Line – Há de fato uma grande continuidade no padrão de Estado que estamos construindo desde 1995?
Ricardo Antunes – Não tenha dúvida disso. Por isso que, quando discutem programa de governo, o debate é fraco. Por exemplo, Dilma tem batido no conceito privatista do governo FHC. É evidente que esse governo foi privatista até a alma. Privatizaram tudo o que poderia ser privatizado no país. Só não fizeram mais porque os movimentos sociais, cada um a seu modo, lutou contra. Mas é importante lembrar que quando Lula ganhou a eleição, seu projeto era a Parceria Pública Privada. Vários setores da Petrobras, assim, foram incentivados a fazer parceria com o setor privado durante os dois governos. Durante a crise financeira, Lula tornou o Estado burguês um importante antídoto, agindo forte econômica e politicamente nesse contexto. O atual governo acelerou o peso do Estado na crise, o que dá ao Lula, no imaginário popular, a falsa idéia de que seu governo é mais estatista do que foi. No entanto, o governo Lula não é só aquele de 2007 para cá, o governo Lula foi quem fez o Prouni que, para mim, é um projeto que incentiva faculdades privadas de quinta categoria a abrir vagas de modo que os pobres tenham formação precária.
O mesmo governo Lula, no seu segundo mandato, especialmente, ampliou várias universidades públicas, o que o governo FHC/Serra nunca fez. Aliás, faltou pouco para que Serra e FHC destruíssem a universidade pública, fazendo quase morrer os funcionários públicos, no geral. Há diferenças entre eles, portanto. São diferenças de pequena monta e não substanciais ou substantivas.
IHU On-Line – Como o senhor vê esse embate criado entre lideranças católicas e evangélicas, de apoio aberto à Dilma e ao Serra?
Ricardo Antunes – Nesse terreno do catolicismo dogmático e do cristianismo de tipo pentecostal ou neopentecostal, há a vigência da dogmática e da “não-razão”, ou seja, é o império do obscurantismo. Se você juntar o catolicismo conservador com a reação à enorme expansão do pentecostalismo no Brasil nas últimas duas décadas, os católicos reagiram com o fortalecimento do catolicismo obscurantista e conservador. Basta lembrar que o importante movimento da Teologia da Libertação que a América Latina nos ofereceu nos últimos 30 anos, hoje, praticamente, não existe. O papado foi destruindo peça por peça as principais lideranças do cristianismo vinculado à Teologia da Libertação. De tal modo que hoje temos o neopentecostalismo (que é a “não-razão” completa) como o enriquecimento na Terra a qualquer preço. Basta ver que a maioria dessas igrejas neopentecostais são transnacionais da fé, algumas presentes em mais de cem países do mundo, enriquecendo na Terra fundado no culto da religiosidade no sentido mais conservador. O cristianismo que responde a isso também é conservador.
Frente a dois candidatos, onde um deles tem a aparência da coerência, a parte mais conservadora deste movimento, tende a apoiar Serra que está junto com setores importantes e fortes da velha direita tradicionalista brasileira. Dilma, por sua vez, é herdeira de um governo que trouxe estabilidade econômica, enriquecimento monumental para os ricos e redução do pauperismo nos setores marcados por maior miserabilidade através do Bolsa Família que desvinculada de qualquer programa de mudança estrutural, é como se fosse a distribuição de um prato de alimentos um pouco menos limitada. O Bolsa Família permite que as famílias que são beneficiadas por esse programa tenham uma alimentação melhor, uma vestimenta um pouco melhor, um dia-a-dia um pouco melhor, mas no estrito sentido assistencialista. O debate acaba migrando para práticas com ideário conservador porque as duas candidaturas não têm o mais longínquo remoto de ser algo de esquerda.
IHU On-Line – Que fatores serão decisivos nesse segundo turno?
Ricardo Antunes – Tal como o quadro está hoje, ele está ainda indefinido. Todas as pesquisas trazem uma pequena ou relativamente média vantagem à Dilma. Mas pesquisa eleitoral não é eleição. Vimos que todos os Institutos de Pesquisas, até na boca de urna, apresentaram dados diferentes dos resultados finais. Só para dar uma ideia: em São Paulo, o candidato mais votado nas pesquisas aparecia em terceiro lugar, sem chance de ser eleito [1]. E mesmo a Dilma teve menos votos do que se esperava. Nos últimos dez dias que teremos, entramos no terreno do imponderável. Cada marqueteiro e sua tropa devem estar tentando tirar das cartolas uma carta mágica. O que pode ser a carta mágica? Um novo escândalo. Dilma começou a cair a partir do escândalo da Erenice Guerra na Casa Civil. Aquele movimento da denúncia, a lentidão em reconhecer a gravidade dos fatos fez com que o cambaleante candidato Serra tivesse munição e um oxigênio novo para, então, levar a eleição para o segundo turno. Isto, aliado às incongruências da posição de Dilma em relação à questão do aborto, foi muito explorado pelo PSDB. O PT sabe que tem que explorar os pontos fracos do Serra e do governo FHC. Um deles que eles estão explorando com muita intensidade é a questão da privatização. O que pode alterar? É o momento do imponderável. O que pode acontecer de hoje até às vésperas? Um elemento novo que pode alterar na decisão dos atuais indecisos e daqueles que estão decididos, mas não de forma categórica. Se isso não ocorrer, teremos uma disputa onde a diferença não será grande.
Ricardo Antunes é professor na Universidade Estadual de Campinas. É autor de Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho (São Paulo: Cortez, 2010), entre outros títulos.
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