Tratado do Atlântico Norte: e do resto, quem |
Segunda, 13 Setembro 2010 | |||
Faz já sessenta anos que, na capital americana, um conjunto de países culturalmente ocidentalizados se reuniu em redor do pretexto de assinar o documento que estabeleceria uma aliança de cariz militar. O mundo desse tempo, ainda não recuperado do caos humano e económico da II Guerra Mundial, e a Europa em particular, procurava nas duas superpotências planetárias o auxílio financeiro que possibilitaria achar o caminho em direcção ao progresso e ao tratamento das mazelas da guerra. Essas superpotências eram os Estados Unidos da América, a ocidente, e a União Soviética, a oriente, cujas dissemelhanças ideológicas e de organização social e económica dividiram o mundo em duas esferas de influência e levaram estes dois países a fazer um esforço no sentido de encontrar modos de se protegerem da ameaça um do outro. A Organização do Tratado do Atlântico Norte, mais conhecida sob a sigla inglesa NATO, foi a forma que os EUA encontraram para, juntamente com os seus parceiros, constituírem uma imensa área armada, preparada para a defesa em situação de ataque soviético, ou pronta para atacar essa mesma ameaça e irromper com a violência para além da cortina de ferro. Apesar de os EUA, e também a ONU, manterem divergências ideológicas de incompatibilidade com Portugal, devido à ditadura de Salazar, à falta de liberdades cívicas e ao projecto colonialista português, os americanos concordavam com a política portuguesa no seu aspecto fundamental: a luta contra o comunismo. Além dessa motivação ideológica, a posse portuguesa dos Açores, a meio do Oceano Atlântico, conferia a Portugal uma importância estratégica de maior a que os EUA não podiam, apesar dos desacordos, fugir. Do lado português, a ambição de Salazar em, rapidamente, tentar adaptar o seu regime ao mundo do pós-guerra, encaminhou a sua prioridade para o estabelecimento de ligações diplomáticas com a potência americana, cujo poder universal poderia valer a Portugal muitos acordos que facilitariam a manutenção do regime repressivo, como o auxílio dos EUA nas questões da ONU. Em 1974, a revolução política e social deu-se em Portugal, e a linha política pretendeu romper com o costume da época da ditadura. Uma revolução, geralmente, tem lugar quando um país sabe o que não quer, mas mantém a discussão acerca do que quer. De costas para a ditadura que a revolução derrubou, o país debatia o rumo para o futuro. Num contexto interno completamente diverso do anterior, as várias facções políticas procuraram, no exterior, cooperação para o seu projecto para Portugal. Num mundo bipolar característico da guerra fria, o Partido Comunista defendia uma aproximação a Oriente; os partidos de centro e direita preconizavam uma aproximação ao modelo americano e ocidental. Em terceiro lugar, pequenos partidos de esquerda, como os que viriam a dar origem ao Bloco de Esquerda, defendiam uma política de não alinhamento por nenhuma das duas esferas de influência: ideia defendida por dezenas de países, em especial em África. O projecto que viria a ser adoptado na política portuguesa, de aproximação ao mundo ocidental, viria a beneficiar da presença portuguesa em instituições como a NATO, o que dava a Portugal um estatuto de país ocidental de longa data, além de que a amizade com os EUA e a concessão das Lajes foram de proveito financeiro para o país que saiu da revolução com o atraso crónico que o regime salazarista aumentou. Hoje, mais de três décadas passadas sobre esse momento da História nacional, Portugal mantém-se não só como membro da NATO, como é um dos países que mais veementemente se presta a cooperar com a Organização nas suas missões belicistas. Mesmo após o fim do clima instável da guerra fria, a NATO mantém-se unida. Já não havendo ameaça soviética efectiva nem dissimulada, a NATO precisou de redefinir o seu papel no mundo para não perder, na teoria, o seu sentido de existência. Num mundo em paz, qual o pretexto para os países mais desenvolvidos do mundo manterem uma organização de cariz bélico? O pretexto que se anuncia é o de manter esse mesmo mundo em paz e auxiliar, de forma armada, as nações que estiverem ameaçadas de algum modo. A pergunta que se impõe é a seguinte: os Capacetes Azuis das Nações Unidas não partilham desse propósito, e não deverá o mundo apostar nas suas capacidades de intervenção, em vez de se evitar o desarmamento de todo o Ocidente? Porque, desde o derrube da União Soviética e com o fim do clima de guerra fria, as missões da NATO têm sido dirigidas apenas à satisfação dos interesses dos Estados Unidos. Não encontramos a NATO a pacificar o ambiente de conflito de Caxemira. Não encontramos a NATO a defender a auto-determinação de zonas como o País Basco, a Córsega, o Eire ou dezenas de nações africanas. Não encontramos a NATO ao lado dos refugiados que se contam em milhões por todo o mundo. Encontramos apenas a NATO a perpetuar conflitos em países árabes cuja única riqueza é o ouro negro, cujas divisas progressivamente fogem para os Estados Unidos, deixando estes países, miseráveis e instáveis, sem recursos de que viver, e com uma vasta população a viver todas as carências que a imaginação humana pode antever. O mundo inteiro sabe isto, e o mundo inteiro sabe que a NATO não coopera com o desenvolvimento destes países. O mundo inteiro conhece que o que os EUA fazem nestes países não é senão a manifestação actual do colonialismo que os europeus fizeram noutros séculos. A NATO, num mundo que se quer plural e onde as culturas se devem influenciar umas às outras na construção de um mundo tolerante, funciona como instrumento de imposição de uma cultura e de um sistema que estabelece nos locais que invade. É a tradução armada e ofensiva do imperialismo americano e da sua incoerência cultural e política: um país feito de gente derivada de todo o mundo e de diferentes culturas que agora expande uma cultura homogeneizada para todo o mundo. O papel de Portugal hoje, e de toda a Europa, não deve mais ser o de subjugação às vontades e interesses dos grandes senhores americanos, oferecendo forças armadas para um conflito e uma causa que nada nos diz, e que contraria a ideia da própria Europa. A Europa uniu-se, no que hoje é a União Europeia, na lógica de um mundo pacífico e seguro num contexto de guerra fria e de iminência nuclear, após a devastação europeia na II Guerra Mundial. O papel da Europa no mundo deve ser o da tolerância e da ajuda ao terceiro mundo, e não o arraso das suas raízes e das suas escassas bases económicas. Deve ter um papel de garantia da paz e de ajuda ao desenvolvimento aos países de todo o mundo que, tal como a Europa no pós-guerra, não encontram em si os meios suficientes para contrariar o seu atraso de desenvolvimento. O terceiro mundo precisa de instrução, precisa de alimentos, precisa de curas para as doenças mais letais, precisa de ajuda. Não precisa de intervenções armadas que procuram retirar o que ainda resta de aproveitável nestes países. O mundo desenvolvido deve unir-se para a protecção das populações, das suas riquezas e das suas culturas. Bombas e violência apenas destroem. A cimeira que terá lugar em Lisboa não deve ser entendida com equívocos. Deve ser percebida não sob o olhar do mundo, mas sob o olhar dos americanos. Na situação actual em que a China é já a segunda potência económica do mundo e se aproxima do poder que os EUA mantêm sobre o mundo há quase cem anos, os EUA procuram, com a aliança militar, redefinir a sua política externa, adaptando-a ao mundo actual mas com os mesmos objectivos que apenas respondem aos seus interesses, não aos do mundo da pluralidade e da urgência da paz e da erradicação das más condições de vida. Um país não existe senão das gentes que o constroem, e é por isso que são os próprios portugueses que devem proferir qual a sua intenção para a presença portuguesa na NATO. Queremos participar na devastação que a guerra provoca e que a comunicação social e a arte têm denunciado? Ou queremos, simbolicamente, ser o primeiro país a largar o passado e, como um exemplo a ser seguido por toda a Europa, dizer "não" ao imperialismo americano e a todas as mentiras do mundo actual? Portugal é um país pequeno, com reduzido número de efectivos das forças armadas, que pouca diferença faria numa tão grande Organização militar. No entanto, o interesse que os EUA sempre encontraram na aliança com Portugal foi o da concessão da base das Lajes, nos Açores. Para o resto do mundo, essa concessão é apenas demonstrativa de um desejo português de encontrar o seu papel no mundo e de ganhar destaque na política internacional. A NATO precisa mais de Portugal do que Portugal precisa da NATO, e é por isso que não devemos silenciar a nossa voz e devemos utilizar da influência que temos. Se Portugal decidir que deixa de patrocinar a guerra, os EUA terão de se esforçar em encontrar outros Açores, ou serão forçados a alterar os princípios orientadores da sua política externa. João Fernandes
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A Comuna 33 e 34
A Comuna 34 (II semestre 2015) "Luta social e crise política no Brasil" | Editorial | ISSUU | PDF
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