Santa Liberdade |
Segunda, 20 Setembro 2010 | |||
A propósito da ante-estreia do filme Assalto ao Santa Maria.
Artigo de Joana Mortágua 'Para o ataque interno, não havia como chegar ao outro lado do Atlântico, para o ataque externo, havia o limite do respeito pelo País de acolhimento. Seguindo este raciocínio, alguém disse – “se não podemos ir a Portugal, Portugal vem a nós“! – estava lançada a deixa que nos levaria até ao Santa Maria'1. Na noite de 22 de Janeiro de 1961, inesperadamente, o povo português é surpreendido por um acontecimento que o deixa entorpecido de pasmo. O país é informado de que o paquete Santa Maria, que navegava em águas da América do Sul, fora tomado de assalto por um grupo armado de 24 oposicionistas portugueses e espanhóis liderados por Henrique Galvão e membros do chamado Directório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL). O Santa Maria levava a bordo 600 turistas e 370 tripulantes, rumo a Miami. Era o melhor navio português e um motivo de orgulho da navegação comercial. Na noite de 22 de Janeiro, os assaltantes dominaram rapidamente a tripulação e silenciaram as transmissões. Nas palavras de Henrique Galvão, 'o Santa Maria sumia misteriosamente no mar'2. O assalto ao Santa Maria marca o inicio daquela que foi considerada uma das maiores e mais graves crises que o salazarismo teve de enfrentar em busca da sobrevivência.3 Talvez sem ter disso a plena consciência, este grupo de insurgentes lançou Portugal e o Regime de Salazar para uma das suas mais difíceis tarefas, que seria a de enfrentar um sistema internacional em rápida mudança, em que a ONU se tornava palco e voz das reivindicações de uma grande quantidade de Estados recém-criados pelos processos de descolonização que, em bloco, tentavam arrastar a 'velha Europa' e os Estados Unidos para a adesão aos novos princípios do anti-colonialismo, da auto-determinação e do direito desenvolvimento económico e social. É no prenuncio deste contexto internacional conturbado e delicado nos seus equilíbrios de mundo dividido em dois blocos pela Guerra-fria, que, no inicio do ano de 1961, um grupo de homens pouco armados e mal preparados vai colocar Portugal no centro das atenções mundiais. Este acontecimento vai marcar de forma definitiva a imagem internacional do regime português, que até aí tinha conseguido 'manter-se à tona' apesar da grande onda de democratização que invadiu a Europa a partir do final da Segunda Guerra Mundial. No que toca ao “sentimento geral” que se apodera do regime, é fácil reconhecer que não foi doce o sabor deixado por Galvão. Pelo contrário, 'é amargo o sulco aberto pela aventura do Santa Maria. (…) É diversa a atitude nos círculos políticos. Para os que apoiam o regime, o episódio é desnorteador: consideram que o governo sofreu um desaire, que o prestígio pessoal do seu chefe está maculado'4. Nos meios oposicionistas, renasce a esperança, alimentada pela atitude das potências durante o episódio. Se é verdade que, no inicio, os Estados Unidos responderam prontamente a considerar como pirataria o acto de Galvão, logo o jovem governo de Kennedy o assumiu e reconheceu publicamente como parte da luta política entre o regime de Salazar e a oposição democrática, um “assunto interno”. Desta posição norte-americana tirou o governo de Londres as suas conclusões que, pela de Washington orientou a sua própria atitude. De igual modo procedeu o governo brasileiro do Presidente Quadros, que não escondia a sua hostilidade à ditadura portuguesa e sobretudo à política africana de Portugal. Foi no Brasil de Janio Quadros que os insurgentes encontraram o seu refúgio, recebidos como heróis. A ditadura estremeceu. 'Internamente, mesmo nas fileiras do regime, é enorme a perplexidade causada pela impunidade da afronta e pela falta de ápio internacional demonstrada: “O caso Santa Maria” atestou […] o isolamento de Portugal e a sua incomodidade para os aliados do Ocidente, com a recusa de MacMillan em secundar os apelos de Lisboa, a cumplicidade de Quadros em relação a Galvão, a proximidade da França e da Holanda e, sobretudo, a atitude de Kennedy, que Teotónio Pereira caracterizou como uma oportunidade enfraquecer publicamente os laços de amizade com um país de conceitos colonialistas e medievais'5. Tudo acabaria depressa, mas o estrago estava feito. O assalto ao Santa Maria iniciava a projecção internacional da oposição à ditadura portuguesa. Mais importante, dessa curta viagem nasceria uma outra, muito mais longa e dura, que nos traria, enfim, a LIBERDADE.
Notas: 1 Camilo Mortágua, 2007, citação autorizada.
2 Henrique Galvão, O Assalto ao Santa Maria, Edições Delfos, Lisboa, 1974
3 Segundo Fernando Rosas, o regime enfrentou entre 1958 e 1962 a sua segunda crise histórica, em que 'o golpe decisivo seria dado pelo célebre “caso do Santa Maria”'. Mattoso, José (dir.), História de Portugal, Vol. VII - Rosas, Fernando, O Estado Novo (1926-1974), Círculo de Leitores, 1994
4 Franco Nogueira, A Resistência
5 Mattoso, José (dir.), História de Portugal, Vol. VII, O Estado Novo (1926-1974) – autor Fernando rosas - Círculo de Leitores, 1994
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