Não partam a minha casa Versão para impressão
Terça, 17 Agosto 2010

Angola – o nascimento de um movimento pelo Direito à Habitação,

e a importância da integração de lutas locais, nacionais e globais.

 

Nos dias 29, 30 e 31 de Julho teve lugar em Benguela, Angola, a Conferência “Não Partam a Minha Casa” organizada e participada por organizações da sociedade civil angolana com a participação de comunidades afectadas por demolições e despejos forçados das províncias de Luanda, Benguela, Kwanza Sul, Huíla e Lunda Sul.

Cerca de 250 pessoas, durante três dias discutiram a realidade das demolições e despejos forçados, denunciaram abusos e atropelos graves à dignidade humana, ao direito nacional e internacional, direitos humanos, problemáticas sociais e territoriais em Angola, desenvolvimento das cidades, elaboraram propostas para o desenvolvimento da requalificação das cidades e para o reassentamento e realojamento dignos quando estes têm de existir, reivindicaram a devida compensação de todas e todos, afectados por esta realidade.

Foi a primeira iniciativa do género em que organizações diversas e comunidades afectadas por esta realidade se juntam, criticam abertamente a actuação das entidades governamentais, reivindicam direitos, fazem propostas, exigem a sua participação no melhoramento das cidades e num desenvolvimento equilibrado que chegue a todos e a todas. A partir desta conferência foi concertada uma estratégia de trabalho conjunto e de aliança de movimentos nacionais, internacionais e comunidades em torno do Direito à Habitação que daqui para a frente pretende combater e denunciar as demolições e despejos forçados, defender os direitos e dignidade das pessoas e trabalhar em conjunto, sempre que possível, com as entidades públicas para evitar as práticas que têm sido seguidas.

Esta iniciativa traz vários elementos importantes que vale a pena precisar: a perda do medo de denunciar e criticar abertamente por vários sectores que até há pouco tempo geriam com muito cuidado as mensagens que mandavam para fora; o aumento da consciência crítica e liderança de organizações e comunidades em processos sociais de transformação; o trabalho em aliança, quer seja em termos nacionais, quer seja em termos internacionais, que assume no contexto angolano uma importância crucial.

Vale a pena recuar um pouco no tempo e tentar perceber como surge então esta iniciativa. Primeiro a guerra que empurrou milhões de pessoas para as cidades em busca de protecção e as precipitou em enormes bairros auto-construídos e caóticos; depois a continuação do êxodo rural num país que continua até hoje a expulsar as pessoas das zonas rurais de várias maneiras, por interesses económicos ou por ausência total de investimento e políticas públicas nas zonas rurais; por fim, desde que a guerra acabou (2002) e se iniciou o processo de reconstrução nacional, o crescimento económico de Angola tem sido grande, devido aos recursos que tem e à entrada significativa de empresas e investidores que, em várias áreas, têm vindo a operar, neste novo El Dourado num mundo em crise. Porém, por maior que seja tal crescimento, não tem sido favorável ao desenvolvimento económico e social da grande maioria dos e das angolanas. É sobretudo com a expansão acelerada da cidade de Luanda e com a especulação imobiliária nesta que começam as primeiras demolições em massa há cerca de quatro anos atrás. Depois começam-se a dar em vários pontos do país, devido ao desenvolvimento de projectos económicos diversos, desde hoteis até à exploração mineira, ou a reabilitação de uma ferrovia. O que é certo é que já foram desalojadas milhares de pessoas, expulsas das suas casas perderam o seu maior investimento, os seus haveres, as suas formas de subsistência económica. Não recebem qualquer apoio ou compensação, por vezes ficam a viver nos escombros, outras vezes são atiradas para descampados e ficam em tendas, ou sob chapas, lentamente vão começando a construir uma nova casa com esforço próprio, num processo de formação de novos mussekes (bairros auto-construídos, sem planeamento, sem saneamento) cada vez mais longe dos centros urbanos. Neste processo ficam privadas de água potável, da sua subsistência diária, de alimentação, incluindo um grande número de pessoas mais vulneráveis como são idosos, doentes, mulheres sós com crianças, mulheres grávidas.

Em Março de 2010, iniciou-se na cidade do Lubango, mais um processo de demolições e despejos forçados, em plena estação de chuvas. 3080 famílias perderam as suas casas (muitas destas devidamente legalizadas). Desta vez o protesto, já várias vezes ensaiado, alastrou-se a muitos sectores. O que estava a acontecer no Lubango – a violência com que aquilo tudo aconteceu, onde morreram sete pessoas, mulheres deram à luz debaixo da chuva torrencial e, até hoje, as famílias não têm acesso à água e ainda não conseguiram reerguer as suas vidas – impulsionou uma nova onde de protestos, impulsionada inicialmente por uma pequeníssima organização de base, com vários sectores a juntarem-se depois e a reclamarem como inaceitável tal situação. Este protesto chegou também à cena internacional, através de uma rede de movimentos de base (No Vox) que organizou protestos junto de embaixadas de Angola em França, no Canadá, no Togo, no Japão, na Bélgica, tendo-se seguido depois em Portugal (pela Amnistia Internacional), assim como o envio de cartas ao Presidente da República, mobilização da comunicação social, etc. 

A ampliação do protesto parece ter sido fundamental para as organizações nacionais ganharem força. A partir daqui uma cadeia de acontecimentos: uma primeira marcha é convocada na cidade de Benguela com o lema Não Partam a Minha Casa. Esta primeira marcha (25 de Março) foi reprimida, proibida pelas autoridades, os seus líderes ameaçados e visitados nas suas casas pela polícia e, no próprio dia, um forte aparato bélico por toda a cidade foi prontamente utilizado para dissuadir quem persistisse. A marcha foi cancelada. O protesto nacional e internacional intensificou-se. Os movimentos, sentindo que não estavam isolados, não desistiram e duas semanas depois convocam outra marcha a 10 de Abril. Desta vez aconteceu, e desta vez a polícia acompanhou os manifestantes, para orientar o trânsito e proteger. Foi um grande passo!

A partir daqui outra marcha se organizou em Luanda por moradores desalojados e a viver nos escombros há 4 anos, e a organização da conferência da sociedade civil em Julho aproveita o acadeamento destes processos, faz um balanço, aperfeiçoa e consolida um movimento nacional e internacional de luta pelo direito à habitação. Esta prática pode abrir caminho para outras causas, outras alianças, outras estratégias.

Angola continua a ser um país onde a liberdade de expressão encontra fortes obstáculos, a intimidação, o controlismo, a delação, o saneamento, a perseguição, o abuso de poder, a corrupção, o autoritarismo e a prisão continuam a ser amplamente utilizados. Apesar disso, os sem voz estão a conquistar a voz, e também a fala, estão a indignar-se, a organizar-se, a denunciar e a propor. É certo que as demolições e despejos forçados vão continuar em Angola, mas também é certo que as comunidades e os movimentos se estão a fortalecer, à custa de muita coragem, mas também por sairem do isolamento em que viviam. As redes internacionais podem jogar aí um papel fundamental, envolvendo-se, apoiando e até, de certo modo, protegendo os movimentos de base e de luta, que actuam em condições muito adversas, com pouquissimos recursos materiais e humanos, em situação de grande isolamento com os vários riscos e limitações que isso acarreta. São estes movimentos que têm feito a diferença em Angola desde Março e é importante ver a importância do desenvolvimento de solidariedades concretas e a integração destes além fronteiras.

Participante na conferência "Não partam a minha casa".

 

 

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