Desde que temos conhecimento sempre existiram relações sociais desiguais, fora uma ou outra pequena excepção circunscrita no tempo e no espaço. Essa desigualdade e desequilíbrio de poder, autonomia e liberdade perseguem as civilizações humanas fazendo dela uma característica quase indissociável da vida em sociedade. Em nome da igualdade entre homens foram-se travando algumas lutas muito determinantes e significativas como foi o caso da abolição da escravatura, a constituição dos direitos humanos, o marxismo com a consciência de classe por parte do operariado reivindicando a igualdade de direitos e o fim da exploração e opressão dos trabalhadores.

Esta consciência e reconhecimento da humanidade de todos os homens e da injustiça da subjugação da maioria deles para usufruto apenas de alguns, foi um despertar importante que promoveu alterações sociais e humanas de enorme relevância. Sabemos hoje que o que adveio desta consciência humana tem um valor inestimável.

Porém, na história esquecemo-nos de uma grande parte da população muito significativa, a maioria dela até, que permaneceu na penumbra dos direitos conquistados, usufruindo até de alguns deles mas de forma trémula. É que os direitos visavam primeiramente todos os homens (sexo masculino, brancos e heterossexuais), posteriormente todos homens heterossexuais independentemente da sua origem cultural ou étnica mas nunca incluíram realmente todos os humanos de ambos os sexos ou mesmo aqueles que desafiam a rigidez dos mesmos.

Ser mulher era ser diferente, um outro, que não se poderia incluir nos mesmos direitos e parâmetros de consideração que os homens. Consequentemente, reconhecer a igualdade dos seus escravos homens era mais fácil do que reconhecer a igualdade das suas mães, das suas esposas e das suas filhas.

Elas participavam nas lutas emancipadoras e na luta de classes ao lado dos homens mas traziam com elas a marca feminina e por isso eram camaradas de luta diferentes dos camaradas homens estando impedidas de falar e tomar decisões. No fundo viam-nas como mulheres corajosas que lutavam pelos direitos dos seus maridos e filhos e respeitavam-nas por isso.

As vozes femininas que se fizeram ouvir reclamando para si mesmas os mesmos direitos foram silenciadas, afastadas, banidas, porque a preocupação da igualdade de género era uma questão “burguesa”, disparatada, insignificante e levaria a uma divisão de esforços quando estes deveriam estar todos concentrados na luta de classes. Um exemplo de uma dessas vozes femininas que se ergueram contra a exploração de classes mas também de género foi Flora Tristán que em 1843 redigiu L’Union Ouvrière adiantando-se a Marx e a Engels e preconizando a constituição de uma Internacional operária que agruparia todos os trabalhadores do planeta. No ano seguinte à construção da sua obra viajou de livro na mão pelas ruas, tabernas e fábricas procurando operárias e operários que quisessem escutar as suas ideias e unirem-se à sua visão de sociedade diferente da conhecida. Nesta obra existia um capítulo dedicado aos direitos das mulheres. Dedicou a sua vida à unificação da classe operária e à emancipação das mulheres e deixou ela também um importante contributo para as mudanças que se seguiriam (1). Este trabalho de Flora Tristán revela a consciência de que, como salienta Bebel, a mulher e o proletário são ambos oprimidos e da ideia expressa por Simone de Beauvoir de que “quando a sociedade socialista tiver dominado o mundo inteiro não haverá mais homens e mulheres, mas tão-somente trabalhadores iguais entre si.” No entanto, a própria Simone de Beauvoir salienta que o materialismo histórico não pode fornecer, por si só, as soluções para a opressão da mulher porque essa opressão diz respeito à humanidade na sua totalidade e não somente à abstracção do homo oeconomicus. As categorias “burguesa” ou “proletária” são impotentes para encerrar a mulher concreta. Existem muitas mais dimensões que teremos de considerar para destruir esta opressão (2).

As mulheres parecem destinadas a uma trágica fatalidade ao não serem vistas como igualmente humanas, pela opressão de que são alvo, pelo apropriamento do corpo, retirada de voz e de protagonismo histórico, pela violência a que estão sujeitas. Estas são questões sobre as quais temos reflectido ao longo dos tempos e se é verdade que algumas de nós interiorizaram a ficção da “condição feminina” criada pelo patriarcado, outras não se resignaram nem se resignam e fizeram o que esteve ao seu alcance para mudar este desequilíbrio existente desde que há memória. E porquê a perpetuação deste desequilíbrio? Este desequilíbrio perpetua-se pelas resistências do velho paternalismo capitalista que na maioria dos países impedem que esta igualdade se realize. Conseguiremos alcançar a igualdade de género quando conseguirmos quebrar tais resistências. (2).

“Quando o burguês se revolta contra o rei, ou quando o colono se revolta contra o império, é apenas o chefe ou o governo que eles atacam, tudo o resto fica intacto, os seus negócios, as suas propriedades, as suas famílias, os seus lugares entre amigos e conhecidos, os seus prazeres. Se a mulher se revolta contra o homem nada fica intacto” (3) tudo se transforma profundamente e ganha novos contornos. Esta é a verdadeira grande revolução porque é aquela que altera toda a base da opressão e dá à luz uma nova forma de vida em sociedade.  

“Bem sei que a revolta da mulher é a que leva à convulsão em todos os extractos sociais, nada fica de pé, nem relações de classe, nem de grupo nem individuais, toda a repressão terá de ser desenraizada, e a primeira repressão, aquela em que veio assentar toda a história do género humano, criando o modelo e os mitos de todas as repressões é a do homem contra a mulher. Nenhum equilíbrio anterior nos será possível (…) Tudo terá de ser novo. E o problema da mulher no meio disto tudo, não é o de ganhar ou perder, é o da sua identidade” (3). Porque as mulheres sempre foram aquilo que a opressão masculina as deixou ser, sempre se moveram onde o masculino permitiu que se movessem e como poderiam as mulheres construir uma identidade sua, verdadeiramente sua no meio de tanta opressão? Terminar com a opressão de género é libertar a humanidade permitindo o surgimento de uma nova identidade para as mulheres, para os homens, para as lésbicas, os homosexuais, os transsexuais e os transgénero. É reinventar a humanidade livre de opressão, é transformar o mundo que conhecemos e enveredar no desconhecido da liberdade plena e da humanidade plena.

A opressão mais antiga de todas é a opressão de género. Não se sabe ao certo como terá tido inicio, existem a respeito várias teorias mas sabe-se que poderá ter um fim e que esse fim pode ser construído hoje, por tod@s nós.

Tal como foi necessária uma consciência de classe para a união dos trabalhadores na reivindicação dos seus direitos ou a consciência da humanidade dos escravos para pôr termos à brutalidade da escravatura, também é urgente e necessária uma consciência de género que faça frente ao patriarcado e ao machismo e exija para todas as mulheres, lésbicas, gays, transsexuais e transgénero a igualdade a que têm direito. Existe “a necessidade da construção de um sujeito político colectivo, alicerçado em laços de solidariedade multidimensional e internacionalista, que intervenha no campo de intersecção da exploração e das diversas opressões de modo a superá-las (…) Não podemos combater uma sem combater todas”. (1) Está mais do que na altura da civilização humana dar este passo.

Nádia Cantanhede

1) Cinzia Arruzza (2010) Feminismo e Marxismo, Entre Casamentos e Divórcios. Edições Combate

2) Simone de Beauvoir (1949), in O Segundo Sexo (vol. I).Edição de 2009. Editora Quetzal

3) Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa (1972) in Novas Cartas Portuguesas, Edição de 2010, Editora D. Quixote