Ser-se mulher: reflexões de uma mulher trans |
Segunda, 03 Março 2014 | |||
O dia 8 de Março tornou-se um dia de luta e de dar voz a tantas e tantas mulheres, cisgénero e transgénero, que sofrem uma luta diária para sobreviver a preconceitos, discriminações, violência e sobrevivência.
Artigo de Lara Crespo Não se nasce mulher, torna-se mulher, escreveu e afirmou Simone de Beauvoir. Num mundo machista em que as mulheres são vistas como seres inferiores e em que os seus direitos são violados diariamente, foi necessário criar um Dia Internacional da Mulher, que todos os anos é celebrado um pouco por todo o mundo. O dia 8 de Março tornou-se um dia de luta e de dar voz a tantas e tantas mulheres, cisgénero e transgénero, que sofrem uma luta diária para sobreviver a preconceitos, discriminações, violência e sobrevivência. Nesta reflexão, falo por mim, como mulher trans, em que vi e vejo todas as dificuldades e todo um estigma que paira sobre a minha cabeça. A, infelizmente, eterna questão da genitália que tenho no meio das pernas, o mórbido interesse no meu aspecto, nas cirurgias que fiz ou deixei de fazer, tudo isto torna a socialização de qualquer mulher trans infernal, para não dizer quase impossível. O meu corpo é meu. Eu é que tenho todos os direitos sobre ele, e ninguém tem o direito de me questionar, de me perguntar, de me julgar. Isso é um desrespeito por mim, por quem eu sou. Sou uma mulher como qualquer outra. Foi com uma identidade de género feminina com quem nasci, tal como qualquer outra mulher. Sinto-me mulher. Sinto como mulher. Não interessa que genitália tenho. Não é isso que faz de mim menos ou mais mulher. O que faz de mim mulher é o que sou como ser humano. Como ser, ponto. Mas o estigma social é demasiado forte. Nós somos sempre vistas como seres estranhos, com a habitual frase-preconceito do "nasceu homem e agora é mulher" ou a outra, igualmente habitual do "olha um homem com mamas". Eu não sou nada disto, como nenhuma mulher trans o é. Nós não nascemos homens, nascemos bebés com uma genitália oposta à nossa identidade de género. Nós não somos homens com mamas. Somos mulheres, e muitas de nós decidem nem sequer fazer alguma alteração a nível mamário. É urgente desconstruir estes preconceitos e pré-conceitos, pois nenhuma de nós é ou alguma vez foi um homem. Não é o nosso corpo que define o que somos, é a nossa expressão de género e a nossa identidade de género que o fazem. Para quem não sabe, identidade de género não é algo que só nós, as "diferentes" temos. Identidade de género toda a gente tem. Pode ser de um género ou de outro. E há estudos que admitem existirem nuances nessa nossa identidade que podem ultrapassar os 500 géneros diferentes. Nada é só preto ou só branco. Há nuances, e há imensos tons de cinzento. Ora bem, e falo por mim, eu nasci com uma identidade de género feminina num corpo que não correspondia no seu todo a essa mesma identidade. A expressão de género é a forma como nós, lá está, nos expressamos socialmente como somos. Podemos ter uma expressão de género tão diversa como tantas identidades existem. Há expressões de mulher que são imensas, há expressões de homem que o são também, e há pessoas com expressões de género que estão entre uma coisa e outra, numa miríade de nuances. Neste dia 8 de Março celebramos a Mulher. E mulheres somos todas nós, com as nossas semelhanças e as nossas imensas diferenças. Mas somos todas, sem excepção, mulheres. E neste dia convém, também, alertar as pessoas para a forte e enorme discriminação que nós, mulheres trans, sofremos apenas por sermos. Somos disciminadas diariamente e continuamente. Há anos que lutamos por direitos que sempre deveríamos ter tido, mas que só os conseguimos depois de muita luta, e muito caminho há ainda pela frente. Todos sabemos que as mentalidades não se mudam de um dia para o outro. Mas é tudo demasiado lento, e os entraves que nos colocam dificultam ainda mais essa mudança. Tem que se parar de vez com a discriminação de mulheres trans nas escolas e universidades. Fala-se muito, hoje em dia, de bullying, mas esquece-se que existem um violentíssimo bullying transfóbico. Bullying esse que é tão insuportável que leva a esmagadora maioria das mulheres trans a pararem e interromperem os estudos, o que leva a que uma grande maioria tenha poucos estudos, o que leva a uma maior dificuldade em encontrar um emprego. Devido a esta imensa transfobia, muitas mulheres trans são maltratadas e expulsas de casa. Expulsas de casa, sem um apoio financeiro e social, a grande maioria acaba por ter que se prostituir para conseguir sobreviver. E este ciclo vicioso tem que parar. Nós temos os mesmos direitos que as outras mulheres. Temos o direito a estudar, a trabalhar, a amar, a viver como as mulheres cisgénero. E a base para acabar de vez com esta atitude transfóbica tem que começar na escola primária. Tem que se ter uma educação sexual abrangente, que além das orientações sexuais inclua a identidade de género. Nós não somos doentes. Nós não somos aliens. Somos pessoas. Somos seres humanos. E temos que ser respeitadas como tal. Temos que ter o direito a fazer dos nossos corpos o que quisermos sem processos clínicos que duram anos, sem avaliações psiquiátricas e psicológicas. Ser-se trans não é estar-se doente. É ser-se uma pessoa como outra qualquer, apenas com uma pequena diferença. Esta psiquiatrização forçada e o estigma da doença é que nos põem doentes. Conseguimos ter em Portugal uma lei que nos permite mudar o nome e o género nos nossos documentos legais. Os próximos passos serão uma verdadeira lei de identidade de género que abranja toda a nossa diversidade e a retirada da transexualidade e transgenderismo dos manuais internacionais de doenças. Vamos fazer deste Dia Internacional da Mulher um dia de celebração verdadeira da diversidade, do respeito e da plenitude daquilo que todas nós somos: Mulheres. Lara Crespo ver também: POR QUE LUTAM AS MULHERES? de Almerinda Bento Foto: Marcha LGBT 2013, autor Ricardo Castelo Branco
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A Comuna 33 e 34
A Comuna 34 (II semestre 2015) "Luta social e crise política no Brasil" | Editorial | ISSUU | PDF
A Comuna 33 (I semestre 2015) "Feminismo em Ação" | ISSUU | PDF | Revistas anteriores
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