Filmes, papeis trans e genitalocentrismo |
Segunda, 31 Março 2014 | |||
... Várias questões se levantam: porque é que nunca uma actriz trans ou actor trans ganhou um Óscar, porque é que os papeis de pessoas trans nunca são desempenhados por pessoas trans, e porque é que, regra geral, os assuntos focados nestes filmes são sempre e invariavelmente, underground?
Artigo de Lara Crespo Ao longo dos últimos 20, 30 anos, muitos e muitas foram os actores e actrizes que desempenharam papeis de pessoas trans. Ultimamente, e devido ao facto de um actor ter ganho praticamente tudo o que havia para ganhar ao desempenhar um papel de uma mulher trans, várias questões se levantam: porque é que nunca uma actriz trans ou actor trans ganhou um Óscar, porque é que os papeis de pessoas trans nunca são desempenhados por pessoas trans, e porque é que, regra geral, os assuntos focados nestes filmes são sempre e invariavelmente, underground? Há um "genitalocentrismo" nestes argumentos que além de me irritar profundamente, releva as pessoas trans novamente para "nasceu homem e agora é mulher" ou vice-versa, "agora é uma mulher de verdade" (porque realizou a cirurgia de correcção genital), além do eterno vislumbre das mulheres trans como trabalhadoras sexuais/ninfomaníacas, cheias de silicone e todos os estereótipos que se possa imaginar, aplicando-se o mesmo aos papeis de homens trans: parecem mulheres butch, comportam-se como cowboys dos idos 1800s e tal, e arranjam sempre maneira de porem o espectador na dúvida do que está a ver. Tudo começa na cabeça do ou dos argumentistas e dos seus preconceitos, por mais interessante que a história seja de contar. Claro que depois passa pela pré-produção, realização e, muito importante, casting dos actores ou actrizes. E do que significa ser-se um actor ou actriz. Confesso que já li um pouco de tudo sobre a importância de serem pessoas trans a desempenhar papeis de pessoas trans, não me considero fundamentalista em nada, mas tenho que concordar que estes papeis deveriam ser desempenhados por pessoas trans. A comparação que encontro e que muitas activistas usaram para defender as actrizes e actores trans foi: já passámos, felizmente, o tempo em que actores brancos pintavam a cara e o corpo para fazerem personagens de negros; também já passámos o tempo em que, nos westerns, os índios eram representados por actores brancos com a pele pintada, umas perucas ridículas e umas penas na cabeça. Acho que também já chegámos a um ponto em que temos actrizes e actores trans que podem representar homens e mulheres trans, sem recorrer a pessoas cisgénero. Porque, além de um bom argumento (e houve-os e há-os de certeza), só uma actriz trans consegue um ponto de empatia com uma personagem trans, que uma mulher ou homem cisgénero, por melhor actor que seja, não consegue. Vi excelentes actuações de actores e actrizes cisgénero de pessoas trans, mas faltava sempre qualquer coisa. Na maioria das vezes soa a falso. Para mim, há três desempenhos que considero bastante bons, dos muitos filmes com temática trans que vi: Felicity Huffman em "TransAmerica", Hillary Swank em "Boys Don't Cry", e Jaye Davidson em "The Crying Game". Todos foram, curiosamente, nomeados para um Óscar, que destes três exemplos que dei, só Hillary Swank conseguiu com a personagem do homem trans Brandon Teena. Não quero tirar o mérito a ninguém, nem dizer que A é melhor que B ou que C. Apenas que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. E que, só nos EUA, há grandes talentos trans que nunca tiveram a oportunidade de serem escolhidos para papeis relevantes, ou até para papel algum. Candis Cayne, Calpernia Addams, Laverne Cox são apenas alguns dos nomes de três grandes actrizes trans que raramente tiveram oportunidade de ter um papel de relevo. Depois de Candis Cayne ter feito um papel na (fraca) série televisiva "Dirty, Sexy, Money", eis que, pela primeira vez, uma actriz, Laverne Cox, tem um papel de relevo e é elogiada por toda a crítica e grandes audiências na série "Orange Is The New Black". Em ambos os casos, temos duas actrizes trans a fazer o papel de mulheres trans. Uma actriz é uma actriz e deve fazer que tipo de papel for. O outro lado da moeda. Sim, uma actriz que seja uma mulher trans também deve poder fazer o papel de uma mulher cisgénero. Mas não é, para mim, a mesma coisa. O tipo de experiência de vida de uma mulher trans confere-lhe um know-how que uma mulher cisgénero não tem. Nós, como eu própria já referi várias vezes aqui, nos meus posts, vivemos, pelo menos, duas vidas numa só. Uma mulher cisgénero não. Agora, os (tristes), regra-geral, papeis atribuídos a actrizes e actores cisgénero sobre pessoas trans. Raramente não são genitalocentrados. Ou é a mulher trans que ainda não é operada e vai ser, ou é a que esconde que não é operada e quando se descobre cai o carmo e a trindade, ou é, no horrível e triste caso real de "Boys Don't Cry", o caso do homem trans que é violado e brutalmente assassinado quando se descobre que ele não é operado, ou seja, não nasceu com pilinha. Para mim, o grande problema nos argumentos, especialmente na elaboração psicológica e física das personagens e o seu percurso de vida, é o preconceito e o esterótipo que os próprios argumentistas têm. Tirando o caso de "Boys Don't Cry", que é baseado numa história real, e mais um ou outro, a esmagadora maioria dos argumentos que incluem personagens trans são elaborados a partir de preconceitos e pré-conceitos do que é (ou devia ser) uma mulher trans ou um homem trans. E a eterna obsessão que as pessoas a nível geral têm pelo que temos no meio das pernas é sempre revelado e exacerbado nestes filmes. Por mais que remexa na minha memória, não encontro papeis de mulheres trans que não fossem genitalocentrados. E já não há pachorra, sinceramente. O nosso, meu corpo, não é propriedade pública. Ninguém tem o direito de violar, sim violar, a minha privacidade e intimidade com perguntas sobre a minha genitália. Já bati no ceguinho e vou continuar a bater, porque parece que as pessoas não se tocam: o meu corpo é meu e só a mim me diz respeito o que quer que tenha a ver com ele. Nós somos mulheres e homens. O que pode interessar aos outros é quem nós somos, o que temos para dar, o nosso talento, a nossa opinião, o nosso choro, a nossa alegria. Já chega de se imiscuírem na nossa intimidade e fazerem um esforço para nos conhecer como somos e acima de tudo de nos respeitarem, independentemente do que temos no meio das pernas. Porque não um filme com personagens trans que explore a riqueza do ser humano e não caia no eterno e sinistro interesse genital? E aqui embatemos na transfobia. A transfobia mata. Mas a transfobia não nos mata só o corpo. Antes disso mata-nos a alma. Lara Crespo Foto: Laverne Cox
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