Abaixo a família monogâmica! Versão para impressão
Domingo, 13 Abril 2014

Jealousy by Yuri Klapouh 1963 - Ukrainian painterOs comunistas não propõem a poligamia do mesmo modo como não defendem a monogamia. (...) As relações amorosas dev[e]m ser pautadas apenas e tão somente pelas decisões livres, emancipadas, das pessoas

 

Artigo de Sérgio Lessa

 

Os comunistas são, desde o século XIX, acusados de serem contra a propriedade privada, o Estado, a religião – e a "família". Nós, comunistas, somos de fato a favor de uma sociedade sem classes, sem Estado, sem propriedade privada. Uma sociedade na qual a abundância torne desnecessárias as religiões, – esse consolo ideológico que transforma a miséria terrena em paraíso espiritual. E, o que agora nos interessa, somos também contra a família monogâmica. Sobre este último ponto criou-se uma enorme confusão que é preciso que comece a ser desfeita: esta a razão deste pequeno livro (1).
Muitas coisas na vida nós tomamos como seguras e garantidas, como se fossem tão inevitáveis quanto a chuva cair das nuvens e o sol nascer a leste. Após milhares de anos de história, nos parece impossível uma sociedade sem Estado, que se auto regule sem qualquer órgão de poder. Civilização e a ordem imposta pelo Estado não raramente são tratados como sinônimos. Uma vida na qual apenas tenhamos que trabalhar poucas horas por mês – algo já possível com o atual desenvolvimento das forças produtivas – nos parece algo tão irreal quanto seres humanos dotados de asas. Que nossas necessidades possam ser satisfeitas sem precisarmos de dinheiro, é alguma coisa que não tem lugar em nossa imaginação após tantos e tantos séculos de comércio. Do mesmo modo, parece uma loucura completa a possibilidade de que homens e mulheres possam criar, educar filhos e possam se amar fora de uma unidade familiar apartada da sociedade e composta por um pai, uma mãe e os filhos.

E, todavia, também é um lugar comum que as famílias que conhecemos e nas quais vivemos e fomos educados são, para dizer o mínimo, problemáticas. Casamento é quase sinônimo de conflitos, dores, sofrimentos dos mais variados tipos. Frustrações, tristeza e melancolia são elementos que estão presentes em  todas as famílias, em algum grau e em alguma medida – por vezes de modo muito forte. Nossos jovens, quando vão constituir família, o fazem com frequência na esperança de que com eles a história será diferente da dos seus pais e familiares mais próximos. São raros os casamentos que perduram, a maioria termina em quase sempre doloridos, complicados, sofridos, processos de separação, para os adultos e para os filhos.
As alternativas que se nos oferece a vida são todas, também, insatisfatórias. Pessoas que optam por relacionamentos mais superficiais, passageiros, e que preferem não constituir família – ou mesmo aqueles que decidem constituir família sem passar pelo cerimonial do casamento e seus atributos legais – enfrentam problemas muito parecidos. A infelicidade e a insatisfação de carências não atendidas ao longo de toda uma vida vão deixando suas marcas nas personalidades de todos nós. Mesmo nas alternativas o outro, além de amado(a), também cumpre a função social de limite ao desenvolvimento do companheiro(a) – e há profundas razões históricas para que isso seja assim.
Com o nosso padrão familiar ocorre o mesmo que com nossa forma de vida social. É cada vez mais insatisfatório e, por outro lado, não somos capazes, enquanto indivíduos e enquanto humanidade, de encontrarmos as alternativas que nos possibilitem uma vida mais feliz. Toda vez que, na história, a humanidade viveu um impasse ao qual não tinha ainda encontrado alternativa, fortalece-se a busca pessoal, quase sempre desesperada, por vezes mágica ou mística, de alternativas rigorosamente individualistas. O sucesso dos livros de autoajuda é um bom exemplo desse fenômeno. Quando se trata de nossos amores e desamores, algo muito semelhante ocorre: avaliamos que os problemas do nosso casamento não se repetirão no próximo relacionamento. Ou, então, achamos que são tão únicos que não se repetirão com os outros casais.
Infelizmente, as coisas são mais complexas. Infelizmente porque, fossem de fato problemas singulares e que ocorrem apenas conosco, poderiam ser solucionados por uma nova postura, por novas opções pessoais. As soluções seriam muito mais simples e rápidas. E, contudo, a incrível generalização do sofrimento individual oriundo das atuais relações familiares indica exatamente o oposto: o problema, muito mais que pessoal e singular, diz respeito ao que todas as famílias, ao que todos os nossos amores, desamores, encontros e desencontros têm em comum. Nossa infelicidade coletiva, nessa esfera, tem também raízes coletivas, gerais, universais. São raízes, causas, que se articulam com toda a história da humanidade, desde sua origem até nossos dias. São problemas que requerem soluções complexas e radicais: complexas, porque se referem à totalidade do modo pelo qual organizamos a nossa sociedade; radicais, porque não aceitam soluções parciais ou efêmeras.
Se os revolucionários do século XIX, sobretudo Marx e Engels– e se, na esteira deles, Lukács, Mészáros e Leacock – estiverem certos, há hoje uma profunda contradição entre a nossa forma de organização da vida familiar, a família monogâmica, e as nossas necessidades e possibilidades de desenvolvimento mais autênticas dos indivíduos também do ponto de vista afetivo. É nesta contradição que lançariam suas raízes os nossos males, desamores, tristezas e sofrimentos comuns das nossas vidas familiares.

Discutir a família é sempre uma questão muito difícil. Em primeiro lugar, porque  não é algo fácil tomar consciência de que o que somos enquanto maridos e esposas, enquanto pais, mães, filhos e filhas não são as únicas alternativas abertas para a humanidade. É afetivamente complicado se dar conta de que o que hoje somos como homens e mulheres, pais e filhos, está tão permeado pelas relações sociais predominantes que terminamos sendo algo muito diferentes do que gostaríamos de ser. Não é fácil compreender como, em que extensão, profundidade e intensidade, as alienações que brotam da propriedade privada atuam sobre nossos sentimentos e emoções mais íntimas, pessoais. Uma avaliação sensata dessa esfera necessariamente tem alguma influência na avaliação pessoal que fazemos de nossas famílias, de nossos papéis enquanto pais e mães, de nossos próprios pais e parentes. Parte, pelo menos, do que consideramos o mais querido e íntimo, o mais pessoal e próximo, será alterado ao compreendermos as raízes históricas desse nosso modo de viver. Nem sempre é algo fácil compreender que nossos amores e relações afetivas mais intensos e íntimos, são, também, determinados pelo desenvolvimento histórico. Que o que hoje somos enquanto membros de nossas famílias  – é um fenômeno social – em tudo diferente da inevitabilidade natural de o sol nascer a leste ou a chuva cair das nuvens.

A ilusão de que nossa forma de organização da vida familiar é a única possível leva a uma concepção superficial e precária do que é a monogamia. Ela seria a obrigação moral de pessoas não traírem seus amados. E esta traição tem sempre o mesmo conteúdo: amar ou ter relações sexuais com outras pessoas. A monogamia se reduziria a um preceito a ser seguido na relação "honesta" entre duas pessoas que se amam. Duas pessoas que se amam, reza a moral, devem constituir um núcleo familiar (por isso, família "nuclear") separada da vida comunitária, comum. E a fidelidade mútua dos cônjuges, mas principalmente da mulher, é um elemento indispensável para a sobrevivência desse núcleo familiar.
Veremos que isso é apenas meia verdade. E a metade menos importante da verdade. Pois esta concepção tão comum sequer questiona por que nos organizamos em famílias nucleares. Não deixa espaço sequer para perguntarmos se, na história, já houve outra forma de organização da vida familiar. Como veremos, a monogamia é muito mais do que mero preceito moral da vida cotidiana – ela é, na verdade, um aspecto decisivo da organização da sociedade de classes.
Ainda segundo o moralismo predominante, se a família monogâmica é a única possível, então questionar a monogamia apenas pode significar duas coisas. Ou se é contra a "família" ou se é a favor do descompromisso afetivo – dos relacionamentos "abertos". É isso, quase sempre, o que se compreende por poligamia. Este, digamos, senso comum, é muito fortalecido porque coincide com as concepções mais conservadoras. Elas tendem a reduzir todas as propostas de superação da atual forma de organização familiar, em particular as críticas que se baseiam no pensamento de Marx e Engels, a um retorno à animalidade: apenas os impulsos biológicos, animais, deveriam reger nossa vida afetiva.
Como veremos, a poligamia é em sua essência muito parecida com a monogamia; ambas são apenas formas diferentes de organização da vida familiar ao redor do poder do marido. São apenas expressões diferentes do mesmo patriarcalismo. Por isso, a crítica dos comunistas à família monogâmica é também a crítica da poligamia que ainda existe de modo residual (mórmons em Utah, nos EUA, haréns na Arábia Saudita, etc.)
Por outro lado, uma sociedade sem família não pode existir. O cuidado das crianças, a preparação dos alimentos, a moradia e a vestimenta, etc., sempre requer alguma forma de família: mas quem pode provar que a única forma de organização familiar é aquela da família burguesa que conhecemos?
O que os comunistas propõem é uma nova forma de organização da vida social,  uma sociedade emancipada da exploração do homem pelo homem: a sociedade comunista. E, para que esta sociedade comunista seja possível, é imprescindível superar também a atual forma de família –, pois, como vermos, a monogamia é a expressão, na vida familiar, da exploração do homem pelo homem. Somos favoráveis a uma organização familiar que não seja ordenada pela propriedade privada. O que significa que somos favoráveis à liberdade mais completa para que as pessoas possam viver seus amores com a maior intensidade e a maior autenticidade. Superar o casamento monogâmico é decisivo para a constituição de uma sociedade que possibilite o desenvolvimento universal e pleno (Marx denominava de "desenvolvimento omnilateral" – isto é, por todos os lados) dos indivíduos. E, para que isso seja possível, é imprescindível superar a sociedade capitalista.
A superação do casamento monogâmico, pela qual lutam os comunistas, é a passagem para a mais livre e plena realização afetiva das pessoas – analogamente a como a superação da propriedade privada abrirá as portas a um desenvolvimento muito superior da sociedade. A organização familiar comunista será um meio para o desenvolvimento superior das pessoas. Os comunistas não propõem a poligamia do mesmo modo como não defendem a monogamia. Não defendemos o descompromisso afetivo e pessoal que caracteriza algumas propostas de "amor livre", assim como recusamos o moralismo monogâmico hoje predominante. Estamos propondo que as relações amorosas devam ser pautadas apenas e tão somente pelas decisões livres, emancipadas, das pessoas. Para isso, como veremos, é preciso superar a sociedade de classes com tudo o que ela implica: o Estado, a violência, a miséria, a exploração do homem pelo homem, as guerras, a propriedade privada, a destruição ecológica ... e o patriarcalismo.

Algo muito distinto do que os conservadores querem fazer crer que os comunistas propõem.

Sérgio Lessa, Professor no Departamento de Filosofia

Universidade Federal de Alagoas

Referências

1) adaptação de "Introdução - Os comunistas e a família monogâmica" in Sérgio Lessa - Abaixo a família monogâmica!. 1a edição. São Paulo: Instituto Lukács, 2012. pp. 7-11. Disponível em: <http://www.sergiolessa.com/Livros2012/AbaixoFamilia.pdf>.

Imagem: "Jealousy" - Yuri Klapouh, 1963.

 

 

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