A "normalidade" de Crato |
Sexta, 05 Setembro 2014 | |||
Ao quinto dia do mês de setembro, existem ainda milhares de professores (entenda-se de quadro de zona sem componente letiva atribuída e professores contratados) que, ao dia de hoje, não sabem se vão conseguir ter uma escola este ano. Será este o cenário "normal" a que se refere Nuno Crato? Será esta a Escola Pública que queremos?
Artigo de Ana Rita Filipe, professora contratada há 11 anos
Nos últimos dias fomos "brindados" com várias intervenções do nosso "rigorosíssimo" senhor Ministro da Educação Nuno Crato acerca dos professores, mais concretamente acerca da colocação destes milhares de profissionais que, até à data, desconhecem qual vai ser a sua escola para o ano letivo que se aproxima a passos largos. As aparentemente sábias e esclarecidas declarações prestadas pelo Ministro Nuno Crato poderão soar "normais" aos ouvidos dos "não- professores", mas a verdade é que algo de muito anormal se passa no arranque de mais um ano letivo. Mas então o que se passa?! Porque reclamam tanto os professores? De que é que se queixam eles? Nas palavras de um dos dirigentes do SPGL, António Avelãs, "se tudo estivesse "normal", as escolas abririam, calendarizariam e preparariam a sua atividade para o ano letivo que começa daqui a 15 dias (...)", uma vez que o "normal" seria que, no dia 31 de agosto, todos os professores e professoras deste país, teriam conhecimento da sua situação profissional – se tinham ou não uma colocação e onde. Tal não aconteceu. E eis que surge uma vez mais, Nuno Crato a "tranquilizar" os portugueses e portuguesas, afirmando no dia 2 de setembro, não haver qualquer atraso na publicação das listas. Mais à frente no seu discurso, aproveita para voltar a falar sobre as constituições de turmas e rescisões por mútuo acordo, como se ambos fossem processos morosos e que de alguma forma, condicionassem a bem dita colocação de docentes. Erro crasso, perdão, cRATO! Em primeiro lugar, desde o mês de julho que as turmas estão formadas. Apesar de as aulas terminarem para os alunos ainda em junho, todos os docentes continuam a trabalhar e a cumprir horário nas escolas até irem de férias (normalmente durante o mês de agosto). E é precisamente nesta altura, ou seja, após o encerramento do ano letivo, que as turmas são constituídas (entre muitas outras tarefas de preparação do ano letivo seguinte). A formação das turmas e a sua posterior validação por parte do MEC constituem desta forma, um dado importante para a gestão de recursos humanos de cada Agrupamento, uma vez que permitem aos Diretores e Diretoras saber quais os docentes necessários para suprir as necessidades das suas escolas. Relativamente às rescisões por mútuo acordo, apenas relembro que, inicialmente havia um prazo (fevereiro 2014). Vá se lá saber porquê, esse prazo foi adiado até julho. Ora, num curto espaço de tempo, Nuno Crato conseguiu reunir vários problemas para resolver – concurso de docentes (mobilidade interna e contratação inicial) que, por si só, é um processo moroso, e a questão das rescisões por mútuo acordo. Desta forma e sabendo de antemão os problemas que iria ter mais à frente com os procedimentos concursais, qual o verdadeiro motivo do alargamento do prazo das rescisões por mútuo acordo? A meu ver, quanto mais cedo se soubesse quem iria rescindir, mais fácil seria para as Direções dos Agrupamentos fazerem um levamento das verdadeiras necessidades para o ano letivo seguinte. Uma vez mais, não foi isto que se sucedeu. Assim, ao deixar avançar no tempo as respostas as estes docentes, Crato dificultou ainda mais o trabalho dos Diretores e Diretoras dos Agrupamentos, relativamente à gestão dos respetivos recursos humanos das suas escolas. Voltando novamente aos procedimentos com vista à colocação dos docentes em quadro de escola (QE) e de zona (QZP); professores sem componente letiva; destacamentos e professores contratados; relembro que, em anos anteriores a este Governo, todos eles se realizavam entre os meses de janeiro e fevereiro e iam, se a memória não me falha, até maio/junho, isto é, decorriam de forma faseada ao longo do tempo. Esta estratégia (julgo eu ser uma estratégia) permitia realizar assim, todos os procedimentos necessários à afetação de professores, de forma tranquila, espaçada e sem grandes confusões. Era durante o mês de agosto, mais especificamente a 30 ou a 31, que esses mesmos resultados eram publicados no que diz respeito aos professores contratados. Todas estas datas eram previamente definidas pelo MEC, encontrando-se disponíveis nos respetivos suportes legais, permitindo desta forma aos docentes, prever minimamente a tão esperada saída de resultados. Acontece que este ano, pela segunda vez consecutiva, nenhum dos prazos estipulados foi cumprido. Esta incerteza criada por Nuno Crato e pela sua equipa do MEC acaba por se traduzir em dificuldades acrescidas ao nível administrativo e de gestão dos recursos das Escolas, uma vez que os Diretores e Diretoras dos vários Agrupamentos ainda não têm todos os docentes necessários. Consequentemente existem ainda tarefas muito específicas de preparação do ano letivo (atribuição de projetos; direções de turma; coordenação de departamentos; etc) que ficam assim em risco e/ou adiadas devido há falta destes docentes. Outra das aberrações, perdão, afirmações proferidas nos últimos dias está relacionada com o elevado número de professores e professoras que encheu os Centros de Emprego no dia 1 de setembro. Passo a citar: "qualquer pessoa tem 90 dias para se apresentar num centro de emprego, não precisa ir no primeiro dia em que suspeita que pode vir a estar sem emprego apresentar-se no centro de emprego". Após o choque inicial ao ouvir tais palavras proferidas por um alto dirigente e representante do Governo, pergunto se durante os 90 dias em que o docente "não é obrigado" a deslocar-se ao Centro de Emprego (sim, porque uma deslocação ao Centro de Emprego para requerer aquilo a que se tem direito e pelo qual é necessário esperar horas a fio e às vezes um dia inteiro é sempre um motivo enorme de alegria), pode ir viver com algum dos membros do Governo. Claro que esta seria apenas uma situação temporária. Seria apenas enquanto o docente aguardava a saída das listas de afetação de docentes. As afirmações de Crato poderiam ser levadas como uma brincadeira, ou não fosse a situação de milhares de docentes, dramática. Mas quem é que no seu perfeito juízo afirma perante a comunicação social que, os docentes têm 90 dias para se apresentarem no Centro de Emprego? Será que os docentes têm direitos diferentes dos restantes cidadãos? Ou simplesmente alguém se "esqueceu" de dizer a Nuno Crato que, até mesmo um docente, só recebe o subsídio a partir do momento em que o solicita (presencialmente e no Centro de Emprego)? Como se o cenário apresentado anteriormente não fosse mau o suficiente, agosto, o mês que deveria ser dedicado inteiramente ao descanso, às férias (infelizmente, é praticamente impossível a um docente, ir de férias noutro mês que não agosto) acabou por revelar-se um mês de tortura; ansiedade e de nervos à flor da pele. Nem mesmo os Diretores e Diretoras tiveram direito a descansar, tendo inclusivamente ido de "férias", com o computador e internet portáteis, só para conseguirem proceder a alterações; preenchimentos de aplicações infindáveis, entre outros assuntos urgentes que achavam já estar resolvidos antes das merecidas férias. Para os restantes docentes, o cenário foi idêntico, pois em pleno agosto, mês do tão merecido descanso, foi novamente necessário proceder ao preenchimento de mais uma aplicação informática, que mais parecia uma obra do "demo" (mais à frente já vão perceber o porque desta expressão). Conclusão: houve férias porque os docentes não se encontravam nas escolas, embora ninguém tenha conseguido verdadeiramente descansar ou estar descansado. Das várias "surpresas" preparadas pelo MEC, foi então que, em pleno mês de agosto, surgiu a tão esperada BCE (Bolsa de Contratação de Escola) com vista à afetação de docentes em escolas TEIP (Território de Intervenção Prioritária) e com Contrato de Autonomia (uma vez mais fora de prazo). A partir do momento em que a aplicação ficou disponível (2 de setembro), rapidamente se tornou num fator gerador de mais ansiedade e stress nos docentes. Várias foram as dificuldades de acesso à aplicação, tendo-se registado casos de docentes que permaneceram horas a fio a tentar acede-la, de forma infrutífera. Importa referir que esta aplicação representa para muitos docentes, a sua única hipótese de conseguirem um horário, ainda este ano letivo. As redes sociais serviram, uma vez mais, para denunciar a situação caótica e angustiante, vivida pelos milhares de docentes. Pouco tempo depois, já a comunicação social recebia as inúmeras denúncias e queixas relacionadas com a nova aplicação informática. Foram inclusivamente apresentados exemplos concretos de docentes que estiveram doze horas a tentar preenche-la ou mesmo acede-la. A pressão levada a cabo pelos professores; associação de professores e estruturas sindicais, fez com que posteriormente o MEC, optasse por prorrogar o prazo até hoje, dia 5 de setembro. Como se não bastasse o elevado número de horas perdidas a tentar aceder e preencher a dita aplicação, os docentes foram ainda surpreendidos com o extenso número de subcritérios de resposta obrigatória. Para quem não faz a menor ideia do "maravilhoso mundo" da docência em Portugal, ficam a saber que estes subcritérios fazem parte de uma lista considerável definida pelo MEC, cabendo no entanto a cada Agrupamento, escolher quais utilizará durante o processo de seleção de docentes. Basicamente, ninguém consegue candidatar-se a estas escolas, sem primeiro responder a um (longo) questionário. De acrescentar também, que estes subcritérios representam assim o último passo na candidatura à BCE e aparecem sem se saber que escola o pediu. Ou seja, o docente é então obrigado a responder aos 50 ou mais subcritérios (que variam consoante o número de escolas a que se candidata), não fazendo a menor ideia qual das escolas pede o quê. Novamente, não se percebe bem onde é que o MEC quer chegar com esta omissão, mas pelos vistos não é para se perceber. Outro dos problemas detetados, e que originou várias críticas e denúncias por parte dos docentes, relaciona-se com as opções de resposta apresentadas para cada subcritério. Para muitos destes parâmetros, as opções nem sempre se adequavam à situação do candidato, levantando por isso sérios e graves problemas, como por exemplo, o da prestação de falsas declarações. Diz a lei que, em caso de falsas declarações, o candidato é excluído do concurso, ficando ainda impossibilitado de se candidatar aos restantes procedimentos concursais que possam ocorrer durante o ano letivo (contratação inicial; contratação de escola; BCE). Com um manual de instruções "pobre" e sem qualquer apoio por parte do MEC para prestar estes (e outros) esclarecimentos, acredito que uma grande parte dos docentes (se não todos) foi forçada a prestar falsas declarações. Perante as várias dificuldades e constrangimentos já mencionados, pergunto-me se não havia uma forma mais simples de colocação de docentes em escolas TEIP e/ou com Contrato de Autonomia. Aparentemente, Nuno Crato acha que não. Por último, os exemplos aqui apresentados só vêm reforçar o caráter "anormal" com que se inicia mais um ano letivo. Uma vez que o texto se encontra demasiado extenso, ficam por descrever muitas outras situações ocorridas não só durante o período de tempo a que se refere este texto, como nos últimos três anos de governação PSD/CDS. É simplesmente lamentável e humilhante, a forma como este MEC, na pessoa de Nuno Crato, insiste em desrespeitar e atacar sucessivamente toda uma classe de profissionais. Estas atitudes têm contribuindo para uma sucessiva degradação não só ao nível das condições de trabalho, mas também da própria saúde física e mental destes profissionais. Há cada vez mais docentes deprimidos e desmotivados nas escolas portuguesas. Há cada vez mais docentes oprimidos por um sistema excessivamente burocrático; precário e com muito pouco tempo para aquilo que realmente interessa – os alunos. Atualmente, ser professor(a) em Portugal, implica (entre várias coisas) adiar a maternidade, em busca de estabilidade profissional; percorrer 200 ou mais quilómetros por dia só para poder trabalhar (dar aulas) e "acompanhar minimamente os filhos em casa; perder o direito ao subsídio de desemprego por não conseguir colocação há vários anos consecutivos; mudar todos os anos de escola; assinar sucessivos contratos no decorrer do mesmo ano letivo; ser colocado tardiamente e só receber ordenado no dia 23 do mês seguinte; perder horas a tentar perceber as sucessivas alterações à legislação; trabalhar aos fins-de-semana; feriados e férias e sobretudo desistir do sonho de uma possível carreira na Educação. Provavelmente o melhor que irá conseguir é ser professor(a) contratado(a) até ter idade para se reformar. Hoje, dia 5 de setembro pela madrugada dentro, ainda não foram colocados os docentes necessários tendo em vista a supressão das necessidades dos Agrupamentos de Escolas. Não foram sequer aprovados os Planos de Ação dos Centros de Recursos para a Inclusão (CRI) para este ano letivo, o que por si só, irá atrasar significativamente a colocação de técnicos especializados necessários (terapeutas da fala; formadores de LGP; psicólogos, etc) nas escolas. Isto significa que, milhares de alunos com Necessidades Educativas Especiais irão começar o ano letivo sem os devidos apoios. Hoje, dia 5 de setembro, existem centenas de professores de quadro de zona que concorreram à mobilidade interna e que ainda não sabem se vão continuar nas escolas onde se apresentaram no dia 1 de setembro. Ao quinto dia do mês de setembro, existem ainda milhares de professores que, ao dia de hoje, ainda não sabem se vão conseguir ter uma escola este ano. Será esta a "normalidade" que tanto apregoa Nuno Crato? Será esta a Escola Pública que queremos?
Ana Rita Filipe, professora contratada há 11 anos. 05/09/2014 (03h30) Foto de Paulo André - Ana Filipe no album Que se lixe a troika. O povo é quem mais ordena - Santarém 2 de Março 2013.
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