O que está a mudar |
Segunda, 31 Janeiro 2011 | |||
Numa perspectiva optimista, o Fundo Europeu de Estabilização Financeira podia ser encarado como a forma embrionária de uma agência de dívida europeia, mas a forma como está estruturado ainda o mantém longe desse papel
Parece que o primeiro leilão de obrigações do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF) – 5 mil milhões de euros com maturidade a cinco anos para o pacote de resgate à Irlanda – foi um estrondoso sucesso, com a procura a superar em oito vezes a oferta. O FEEF faz parte da recém-concebida rede de mecanismos destinados a assegurar assistência financeira aos estados membros que não consigam obter financiamento nos mercados a taxas de juro suportáveis, com vista à preservação da estabilidade financeira dentro da União Monetária Europeia. Para realizar esses empréstimos, o FEEF pode emitir obrigações ou outros instrumentos de dívida até 440 mil milhões de euros, assegurados pelos 16 países do Euro. Estes empréstimos podem ser combinados com empréstimos do Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira, de até 60 mil milhões de euros, obtidos pela Comissão Europeia nos mercados financeiros com o orçamento da EU como colateral, e de até 250 mil milhões do Fundo Monetário Internacional. À partida, de uma certa perspectiva optimista, isto quase podia ser encarado como a forma embrionária de uma agência de dívida europeia. Por um lado, as garantias apresentadas permitem que as obrigações do FEEF sejam emitidas a baixo custo, o que permitiria que os empréstimos aos países que a este mecanismo recorram fossem concedidos a taxas de juros (bastante) inferiores àquelas a que conseguiriam vender as suas dívidas soberanas no mercado. Isto deveria bloquear as profecias auto-realizáveis dos ciclos especulativos (juros elevados – mais dificuldade em pagar a dívida e aumento do risco percepcionado – novo aumento dos juros exigidos): não só impedi-las de chegarem aos limites que tornariam as economias insolventes, como também libertar as instâncias de decisão de política económica da sua chantagem, permitindo adoptar medidas favoráveis ao crescimento económico, resposta realmente eficaz para o problema da dívida (medida em % do PIB). Esta é a racionalidade económica – mas também político-democrática – que justifica a reinvindicação pela criação das euro-obrigações. No entanto, por imposição da Alemanha, que já mal disfarça a postura não-cooperante que sempre teve na integração europeia – e os interesses do seu sector financeiro – com o bolorento moralismo do costume acerca do despesismo dos países periféricos, a forma como este FEEF está estruturado mantém-no ainda muito longe deste papel. Para desincentivar o tal laxismo orçamental, dizem, e o comportamento free-riding por parte dos indisciplinados relativamente aos orgulhosos “três ás” do rating da economia alemã, a taxa de juro a pagar pelo recurso ao fundo deverá ser a mesma que foi acordada com a Grécia e a Irlanda (entre 5 e 6%). Mesmo que a procura no leilão de dia 24 tenha fixado as yields (as taxas de rendibilidade inerentes às obrigações) a apenas 70 pontos base acima das obrigações alemãs, a “ajuda” EU-FMI cobrará pelos empréstimos concedidos uma diferença de 300 pontos base relativamente às bunds. Qual o custo – em termos económicos e em termos políticos – deste “spread” de moralização? Muitas análises económicas1 convergem em que, a cobrar taxas de 5,5% pelos empréstimos concedidos a países como a Grécia, a Irlanda e Portugal, mais vale Bruxelas começar a pensar num plano B. Para o cálculo da variação do rácio da dívida, interessam o saldo orçamental, a taxa de juro média da dívida pública e a taxa de crescimento do PIB. Um recurso de Portugal ao FEEF nas presentes condições – mostram estas análises – não permitiria nem estabilizar o rácio da dívida. Diante dos 5,5% exigidos pelo fundo, para inverter a tendência de aumento do peso da dívida sobre o produto, a economia portuguesa teria de apresentar uma taxa de crescimento positiva e um saldo orçamental excedentário. Segundo a Economist2, só para obter um tal excedente no saldo orçamental primário, capaz de estabilizar o rácio da dívida, cada um destes países necessitaria de cinco anos de aumento de impostos e de cortes na despesa. E com uma procura interna deprimida pelo desemprego e pelas medidas de austeridade (com o consequente emagrecimento das receitas fiscais a dificultar ainda mais o objectivo orçamental), apostar num cenário de crescimento denotará talvez demasiado entusiasmo pelas exportações. E isto ainda antes das contrapartidas de austeridade adicional que viriam prescritas juntamente com o empréstimo e que tornariam ainda mais essa perspectiva uma miragem. Mais pragmática que o puritanismo ideológico de Bruxelas, a análise da Economist defende que, nestas condições, a reestruturação das dívidas de alguns países periféricos (Grécia e Irlanda com certeza, e Portugal, provavelmente) é inevitável. E que a única alternativa razoável no longo prazo à reestruturação da dívida é a decisão política por um aprofundamento da união económica, com orçamento que opere transferências orçamentais correctoras de assimetrias e euro-obrigações. É aqui que passamos para o outro nível de análise, i.e. do significado político contido numa resposta institucional com os moldes deste FEEF. E enquanto resposta a fragilidades intrínsecas da integração europeia este mecanismo é, do ponto de vista institucional, claramente insuficiente, e, do ponto de vista da democracia na governação económica da zona euro, insatisfatório. O facto de funcionar como ajuda externa em vez de corresponder a uma solução federalista verdadeiramente estrutural, a limitação da sua capacidade de intervenção e o seu carácter temporário (terminará em 2013) significam que o diagnóstico feito à crise europeia coloca a tónica não nas assimetrias económicas da zona euro sobreexpostas a dinâmicas especulativas desreguladas mas no risco de contágio inerente à liberalização financeira. É o ordoliberalismo alemão na sua grande forma: mesmo com declarações de intenção de torná-lo permanente e mais flexível (permitindo a compra de dívida soberana nos mercados secundários), o “spread de moralização” e a prescrição de austeridade, que transferem rendimento do trabalho para o sector financeiro, fazem o FEEF corresponder mais a um mecanismo de higienização dos balanços das instituições financeiras expostos às dívidas das economias periféricas do que propriamente a um instrumento de política económica que permita a estas encetar um caminho sustentável de retoma e com objectivos democraticamente determinados. Mariana Santos 1 Por exemplo, Jorge Bateira, em http://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2011/01/dinamica-da-insolvencia.html 2 The Economist, 15-21 Janeiro 2011
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