A rota da rebelião foi traçada, nestes dois últimos meses, pelo sopro de um forte vendaval exigindo democracia, liberdade e dignidade associadas à transformação social. Na «margem esquerda» do Mediterrâneo os povos levantam-se contra as ditaduras e os ditadores fantoches dos interesses transnacionais. Apesar de não existirem cartazes contra o domínio dos EUA , nem uma expressão clara de luta contra o imperialismo que sustenta os ditadores, ouviram-se manifestantes dizer: «A nossa situação não é só culpa do Mubarak; é também culpa das potências internacionais». Esta consciência que se revela nas palavras de manifestantes nas ruas de Alexandria e na Praça Taharir do Cairo, mostra que, não tendo ainda uma expressão generalizada, a possibilidade de surgir uma resposta política anti-imperialista - aliás com força histórica indelével no Egipto com realce para o período entre 1952 e 1970 sob a direcção de Nasser - vai ser a grande dor de cabeça dos zeladores da «ordem internacional» que não do direito internacional que subvertem e violam criminosamente e sem pudor. Na Tunísia, depois de uma repressão inicial que a força do movimento social conseguiu travar impondo uma relação «à 25 de Abril» entre tropas e manifestantes, o presidente Ben Ali e todo o seu governo foram obrigados a largar o osso, as instituições são objecto de profunda reforma, uma nova constituição irá ser aprovada, as contas dos familiares e amigos de Bem Ali, no valor de milhares de milhões de dólares, foram congeladas. A «comunidade internacional», ou seja o grupo dos Gs, 2, 8,9, 12 ou 20 – a arquitectura variável do domínio dos EUA - mais os seus cúmplices menores, irmanados na neocolonização, no genocídio, na deportação a que se chama «refugiados» e no massacre de populações inteiras, foi apanhada de surpresa e não houve tempo de encanar a perna à rã para salvar o amigo ditador. A capacidade de resposta do imperialismo no seu avatar francês e europeu foi ultrapassada pela rapidez dos acontecimentos. No Egipto a coisa fia mais fino. O Egipto é actualmente o grande bastião dos EUA no mundo árabe e um aliado discreto de Israel e da sua política de apartheid , tendo colaborado no cerco a Gaza durante a operação assassina adequadamente intitulada «Chumbo Fundido» . Trata-se, portanto, de uma questão vital para o Obama impedir qualquer evolução da revolta social no sentido de uma alternativa política independente e socialmente avançada e que possa enfraquecer o domínio israelita na região. Israel, aliás, já deu indicações de quem quer a negociar pelo governo, o mesmo que indigita para substituir Mubarak se necessário.
Bate-chapas e tinta robialac… As negociações levadas a cabo entre putativos representantes do movimento revoltoso e o poder são uma enorme farsa O ditador Hosni Mubarak faz-se representar pelo seu homem mais directamente ligado à CIA e às prisões e torturas de prisioneiros de Guantânamo, como acontece, aliás, com outras ditaduras árabes (a Síria!) e várias democracias europeias, todos unidos na luta terrorista contra o terrorismo. Trata-se do ex-ministro do interior e actual vice-presidente, Omar Suleiman que pessoalmente extorquiu pela tortura confissões para sustentar a tese de Bush de existência de armas de destruição maciça na posse de Sadam para juistificar a invasão do Iraque. 50% dos trabalhadores egípcios sobrevivem com cerca de dois dólares diários o que os torna uma mão de obra ao preço da chuva e uma atracção ao investimento estrangeiro virado para uma dinâmica de exportação altamente competitiva. Tal situação leva os mais liberais norte-americanos a sugerir que os egípcios o que querem é trabalho e pão, independentemente do regime. A resposta de Obama passa por exigir reformas – claro que de acordo com o cânone imperialista, ou seja liberdade de negócio, de corrupção, de exploração e de extorsão – apoiadas em mudanças visíveis do ponto de vista da estrutura do poder – eleições sob controlo, liberdade de expressão e manifestação q.b., defesa dos «direitos humanos» ou seja tortura só quando for indicado ou a CIA precisar. E tentar impor uma transição que mantenha Mubarak e/ou o seu aparelho pintados de novo. O exército que se tem mantido num baixo perfil de intervenção, parecendo assegurar a «tranquilidade» na praça da liberdade mas não travando a ofensiva dos caceteiros assassinos de Mubarak contra os manifestantes, é o instrumento mais fiel dos EUA e a garantia de que a «transição democrática» correrá bem. Baradei e a Irmandade Muçulmana já entraram no negócio. Os manifestantes que não abrem mão das suas reivindicações essenciais, liberdade, democracia, emprego e elevação real do nível de vida não desistem de associar essas exigências à saída sem condições de Mubarak e da sua trupe. As manobras dos EUA costumam sempre levar ao desastre e à carnificina. Mas têm sempre a resposta universal: a guerra se for necessário. Que conduz a novos desastres e carnificinas. Açougueiro-mor! A dilação na resposta às exigências da revolta social, a utilização do exército para a controlar com aparente quietude e suavidade – apesar dos trezentos mártires como se chamam na cultura árabe - a tentativa de fazer a transição para o grupo reaccionário de el Baradei e o grupo fundamentalista da Irmandade Muçulmana, vai ter como resultado a médio prazo, se não for a curto, a possibilidade de um Estado confessional.
… ou lutar contra o domínio imperialista? O estado confessional, um fascismo com deus por cima, como Israel ou como Arábia Saudita e outros estados árabes, só estará garantidamente posto de parte se a revolução social impuser sem delongas nem hesitações o programa político que está na rua e mobiliza o povo egípcio, e se perceber, rapidamente, que com o imperialismo não há democracia, nem desenvolvimento, nem emprego para o povo. A possibilidade de novas e mais graves confrontos entre forças inorgânicas ou do partido do poder manipuladas por Mubarak e pelos EUA (que aos milhares se concentraram, frente à assembleia legislativa clamando por que não haja alterações à constituição, ou seja tudo na mesma mubarakianamente) e a massa de revoltosos que já estão a utilizar «sit in’s» nas estradas e a promover greves e exigem frente ao edifício do governo a demissão do primeiro-ministro, mostrando que a luta vai evoluir. Se a luta de classes prosseguir avassaladora percorrendo novos caminhos guardando bem forte a memória dos que Nasser e outros dirigentes árabes rasgaram nos anos cinquenta e sessenta: os da independência, da recusa da ingerência imperialista, da liquidação dos latifúndios com uma reforma agrária avançada, do desenvolvimento com um programa socialista, o povo egípcio terá dado um passo de gigante na sua luta e pela luta dos povos árabes. As revoluções nacionalistas árabes, com destaque para a Argélia de Ben Bela, o Egipto de Nasser, o Iraque de Sadam, a Pérsia/Irão de Mossadeg construíram repúblicas laicas e progressivas. Foram as manobras do imperialismo com especial incidência nas ex-potências coloniais que estiveram na origem de ditaduras fundamentalistas ou religiosas. O desaparecimento prematuro de dirigentes progressistas carismáticos, a capitulação do poder construído sob o programa nacionalista e de expressão social avançada, a corrupção que lhe vem sempre associada, deram espaço ao fundamentalismo islâmico, como aconteceu, aliás, com a própria OLP de Arafat.
A abjecção das «nações civilizadas» mostra as partes mais baixas As revoltas árabes a que estamos a assistir revelam aquilo que a UDP há muito vem caracterizando: nos dias de hoje, o imperialismo só tem um inimigo real e, a prazo, invencível: a luta e a vasta mobilização social. Não é o terrorismo fundamentalista que preocupa o império. Mas que os povos sob controlo de ditaduras terroristas ao seu serviço se levantem. A esperança do prosseguimento da revolução democrática na Tunísia e no Egipto, e eventualmente noutros países árabes, tem uma base histórica profunda e, se mantiver uma vasta mobilização, sairá vencedora porque as forças repressivas estão moralmente debilitadas enquanto tal e a «comunidade internacional» apesar do seu cinismo abjecto e criminoso não será capaz, pela resposta dos próprios povos em cada país, de admitir uma repressão brutal a um povo armado apenas da sua vontade de liberdade e democracia e de um programa político avançado traduzidos numa mobilização cívica permanente. Os países da União Europeia e os EUA já sofreram uma forte derrota política que vão pretender escamotear, tentando esconder a vergonhosa cumplicidade e o apoio miserável às ditaduras do Magreb que inclui o suporte à política colonizadora e genocida do povo sahauri por parte de Marrocos com quem Portugal tem um acordo de defesa. Bem pode Francisco Assis, por detrás duma tonitruante e ridícula indignação recusar, ao lado da direita, uma moção apresentada pelo grupo parlamentar do Bloco de Esquerda, de saudação à revolta democrática do povo egípcio para esconder a obscenidade da Internacional Socialista a que pertencem os partidos sob fogo popular, assim como a vergonha do apoio de Portugal – fantoche dos EUA – aos outros fantoches magrebinos. Bem pode o Ministro Amado receber com demonstrações de carinho o nazi /sionista ( monstro completo) Lieberman, ministro dos negócios estrangeiros de Israel, directo beneficiário da ditadura de Mubarak e opressor sem restrições do povo palestiniano que coloniza contra todas as resoluções da ONU; bem pode a NATO preparar-se para receber no seu seio, no prolongamento das manobras conjuntas que fazem desde há muito, o Estado criminoso de Israel: estas revoltas no mundo árabe, mesmo que não fossem muito mais longe, já deram uma violenta cacetada na propaganda do império quando tenta esconder o esbulho e a guerra contra os povos com alegações de defesa e implantação da democracia. A luta social revolucionária, ou seja a instalação no espaço público e sua ocupação como forma de impor a vontade de um povo, não serve apenas como resposta às ditaduras. Ela é, hoje, a resposta às políticas do império no seu próprio terreno. Ela é a forma mais avançada da luta de classes nos nossos dias. O que quer dizer que, na Europa, na nossa Europa, a revolução também pode já ter estado bem mais longínqua.
Mário Tomé
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