Parece estar a cumprir-se, só agora, o desígnio dos movimentos de independência de países como a Tunísia e o Egipto (e veremos o que acontecerá com Marrocos, a Argélia ou mesmo a Líbia, já para não falar do continente asiático) em insurreições que juntam elementos conjunturais (o desemprego e a crise económica e a alta dos preços dos bens de primeira necessidade) com vectores estruturais (os regimes de um paternalismo despótico alinhados com Washington). Na verdade, depois das promessas radiosas do panarabismo nacionalista e secular dos anos 50-70, vingaram as ditaduras associadas a uma forte acumulação de riqueza por parte de elites corruptas e, em geral, próximas dos Estados Unidos. Estas revoltas ajudaram, aliás, à queda de muitos mitos. Um deles assentava na crença da impossibilidade de uma opinião pública insurgente, porque fracamente escolarizada e sujeita à opressão. Ora, na Tunísia foram as populações pobres do interior as primeiras a manifestarem-se. Outro desses mitos, convenientemente alimentado pelos países europeus e pelos Estados Unidos, clamava que a opção seria sempre entre um “regime musculado” e o “fundamentalismo islâmico”, pelo que o primeiro deveria ser apoiado. A realidade mostrou, pelo contrário, que as oposições são bem mais diversas e que a questão religiosa está longe de ser, por enquanto, fundamental. Um e outro mito alimentavam os medos e justificavam o injustificável: a amizade íntima entre os tiranos e uma boa parte da classe política europeia (como o caso francês demonstra) ou o acolhimento na Internacional Socialista dos algozes Ben Ali e Mubarak! Entretanto, o horror à autodeterminação dos povos leva a que os mesmos de sempre sustentem a ideia de uma “transição pacífica” que significaria, no essencial, manter estes países como satélites dos Estados Unidos (e de Israel) e conservar, à custa de algumas cedências nas liberdades formais, a estrutura da propriedade e da distribuição de riqueza. Ainda é cedo, por isso, para saber se estas revoltas se transformarão em revoluções. Mas a persistência das populações, mesmo depois de investidas brutais que causaram centenas de mortos, radicaliza os protestos e evidencia uma politização uns graus bem acima do que as simplistas teses da “impossibilidade de democracia” nestas nações postulavam (o mesmo argumento, em boa verdade, que caucionava os colonialismos, pela suposta incapacidade dos “indígenas” em se autogovernarem). Perante a aflição de Obama e de Hillary Clinton em tentarem saltar para um comboio que acelera vertiginosamente, abre-se a possibilidade de uma nova ordem internacional, num contexto em que a crise económica do capitalismo global começa a provocar os seus danos, que poderão não ser meramente “colaterais”.
João Teixeira Lopes
|