Lei de identidade de género: é fácil, é rápido mas não há cirurgiões Versão para impressão
Terça, 08 Março 2011

feminismoUm dia depois da lei de identidade de género ter sido promulgada, descobrimos que o único clínico que realiza as cirurgias de redesignação de sexo no SNS irá abandonar de vez o Hospital de Santa Maria.

Artigo de Érica Postiço

 

Cai assim em saco roto uma lei que viria ajudar a melhorar a vida dos transexuais em Portugal.

A seis de Janeiro deste ano Cavaco Silva vetou a lei da Identidade de género e falou-nos das "perturbações" do "transexualismo". A um de Março, Cavaco vê-se forçado a promulgar a lei, não sem antes nos dizer tudo o que há de errado com ela e dizendo também que não há no mundo outra lei como esta. É verdade, esta será a lei de identidade de género mais respeitadora dos direitos humanos em toda a Europa e no mundo. Ela vem simplificar o processo de alteração de nome e sexo dos e das transexuais nos seus documentos de identificação. Parece pouco mas vem reduzir o tempo de espera para que alguém veja a informação presente nos seus documentos de acordo com o seu género real (e que, por sua vez, segue um processo moroso de diagnóstico de "perturbação da identidade de género"). Vem assim ajudar a acabar com uma discriminação que impedia que muitos homens e muitas mulheres transexuais conseguissem arranjar emprego uma vez que as informações que se encontravam nos seus documentos eram diferentes das fornecidas pela pessoa que se candidata ao emprego. "Aí diz que o meu nome é Maria mas eu sou o Manuel".

No final de Fevereiro passaram-se cinco anos desde o assassinato de Gisberta Salce Júnior. Esta mulher era transexual, prostituta, imigrante, toxicodependente e seropositiva e morreu depois de três dias de agressões físicas e sexuais por um grupo de rapazes (catorze, entre os doze e dezasseis anos), tendo um deles admitido que o fez porque odiava "travestis". Quando a julgaram morta tentaram queimá-la para destruírem as provas e, como não conseguiram, atiraram-na a um poço. Mas, segundo o instituto de medicina legal, Gisberta não estava morta, apesar de o cadáver apresentar lesões múltiplas que a teriam morto em poucas horas. Percebeu-se assim que Gisberta morreu por afogamento e que aquela não passou de uma "brincadeira que correu mal". Existirão outras Gisbertas em Portugal mas é sempre difícil provar um crime de ódio quando falamos de pessoas que concentram em si imensas discriminações. O caso de Luna, transexual, prostituta e imigrante cujo cadáver foi encontrado num contentor de lixo em Loures precisamente dois anos depois do homicídio no Porto é disso exemplo.

A verdade é que a transexualidade e a identidade de género estão na ordem do dia. E saiu esta semana mais uma notícia sobre o assunto: João Décio Ferreira, o único clínico que fazia as cirurgias de redesignação de sexo no Serviço Nacional de Saúde, abandonou de vez o Hospital de Santa Maria. Reformado desde 2009, o médico continuava a trabalhar no Hospital. No entanto, os novos valores pagos aos reformados que se mantenham no SNS fizeram-no sair de vez. "Propuseram-me um horário de 35 horas semanais pagando-me um terço da reforma ou um terço do ordenado conforme eu quisesse, isto é, no meu caso, seis euros por hora brutos (antes de descontar o IRS). Por dez horas de bloco operatório (umas quatro ou cinco operações) receberia 60 euros ou seja ganhava mais ou menos 40 euros depois de descontar o IRS", disse numa entrevista ao Público. Existe outra pessoa interessada em seguir os passos do médico mas ainda lhe faltam dois anos de especialidade pela frente. Ou seja, pelo menos durante estes dois anos todos os transexuais que desejem submeter-se à cirurgia de redesignação de sexo serão obrigados a recorrer ao privado ou a esperar no mínimo mais dois anos para terem os órgãos sexuais de acordo com o género com que se identificam. Fala-se de vinte pessoas em lista de espera num total de 200 transexuais em Portugal mas o número real é superior. Para já, nada obriga um transexual a optar por uma cirurgia de redesignação sexual, uma vez que não são os órgãos genitais que definem o género de uma pessoa e também nada obriga um transexual português a fazer as cirurgias em Portugal. Mas, quando alguém opta por isso, tem pela frente um longo processo de diagnóstico que culminará anos depois num lugar na fila de espera para a cirurgia. Muitos e muitas são obrigados a adiar as operações ou a encaminharem-se para hospitais privados por não quererem ou poderem esperar anos (fala-se de dois mas são vários os casos que duram mais de cinco anos) para ter um corpo que esteja de acordo com a sua identidade de género.

E optar por não esperar anos por um diagnóstico (que pode nem ser positivo) não se deve apenas a uma "urgência" em ter o corpo que sentem ser seu. Sem a ajuda de certas cirurgias e tratamentos hormonais pode ser complicado assumir plenamente o papel social com que se identificam e enquadrando-se naquilo a que a sociedade definiu como os estereótipos de "homem" e "mulher", tal como é complicado ter uma vida normal quando os seus documentos não estão em conformidade com a sua verdadeira identidade. Não tendo nenhuma destas coisas, os transexuais são atirados para situações de exclusão social extremas. Falamos de uma fatia da população vítima de grande preconceito e que facilmente vê associada à sua condição questões de grande pobreza, pois são muitas vezes rejeitados pela família e têm grande dificuldade em encontrar trabalho não apenas devido à crise actual mas devido à transfobia presente em quase toda a sociedade.

Assim, não deixa de ser oportuno o momento da proposta feita ao único clínico que fazia essas cirurgias no SNS. De que importa ter uma lei de identidade de género (promulgada a contra-gosto e com os votos contra de quase toda a direita) quando não há quem faça as cirurgias aos transexuais que não têm dinheiro para recorrer ao privado? Esta situação não é "apenas" mais um ataque ao SNS, trata-se de um ataque aos direitos de um dos grupos mais discriminados na nossa sociedade. É muito fácil jogar com o preconceito da população fazendo-a crer que se tratam de cirurgias meramente estéticas que não devem ser pagas pelo Estado e por isso é necessário garantir que não se abre aqui uma possibilidade para retirar as cirurgias de redesignação de sexo das listas das cirurgias comparticipadas. É necessário exigir a continuação destas cirurgias no SNS e é necessário exigir a contratação de outros médicos, mesmo que vindos de outros países, para garantir que a vida das pessoas não fica em stand by por dois anos. Os direitos das pessoas não podem esperar pela conjuntura adequada e não podem ser postos de parte por dizerem respeito a uma fatia pequena da população. A luta contra a transfobia tem de ser a luta de uma esquerda que defende o fim das discriminações. O combate pelo fim de todas as discriminações é o combate de uma esquerda moderna do século XXI.

 

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