Do Bairro à Prisão: feições do mesmo ciclo ou é possível inverter as lógicas? Versão para impressão
Sexta, 28 Outubro 2011

 

prisao

A prisão, ou as prisões, não podem ser pensadas nem entendidas fora das lógicas sociais mais vastas. Quer isto dizer que as prisões não são nem instituições autónomas das relações de poder da sociedade, nem muito menos instituições neutras no debate sobre a desigualdade social e os mecanismos de construção e reprodução dessa desigualdade. Um dos casos paradigmáticos neste debate é o caso do Casal Ventoso. Miguel Chaves, em “Casal Ventoso: da gandaia ao narcotráfico” dá-nos uma visão socialmente ampla e cientificamente apurada sobre a construção social (e de certa maneira história) do bairro, de como a evolução dessa construção é marcada pela emergência social do tráfico de droga, pela formação de estigmas e identidade(s) de bairro e sobretudo de como essa evolução tem uma ligação intrínseca à condições sociais, económicas e de classe dos seus residentes.

O Casal Ventoso foi um bairro que nasceu do desenvolvimento do operariado do terminal de Alcântara e dos caminhos-de-ferro, ocupado por uma população pobre de diferentes partes de Lisboa, caracterizada pelo autor simbolicamente (e de certo modo também materialmente) pela actividade da gandaia – recolha de objectos com valor do lixo para venda e comercialização. Na verdade, em 1981 35,1 % da população do bairro não tinha qualquer escolaridade e apenas 6,2 % tinham mais que a 4ª classe. Esta era uma população com pouco capital económico, cultural e social. Com o desenvolvimento da história e da identidade do bairro, desenvolveram-se também estigmas e representações sobre bairro. Estes estigmas, que individualizam o bairro a uma característica, que atribuem ao bairro o simbolismo dessa característica e que pessoalizam essa característica nos seus habitantes, neste caso tem a ver com o tráfico de droga. Ora a construção deste estigma não só não admite um conhecimento sobre os factores que fizeram aparecer o tráfico de droga como esquece o problema de que é objecto esta abordagem: os jovens do bairro, pobres, sem acesso ao sistema de educação, estigmatizados e segregados, rendidos à facilidade do tráfico de droga do bairro são de facto criminosos? Ou é criminoso o ciclo social que os transporta para esta situação? A mesma pergunta fazia Jorge Amado na sua narrativa sobre os “Capitães da Areia”.

A especificidade deste caso não é também ela desfasada das conceptualizações teóricas sobre as normas, os desvios e as instituições totais. Na verdade, os jovens que no Casal Ventoso controlavam o tráfico de droga, eram os jovens que eram presos e privados de qualquer tipo de relação de socialização. Como refere Carlos Medeiros e Mário Baptista “a prática sucessiva de actos desviantes originar que uma subcultura venha a tornar-se integrativa e normalizadora do desvio e chegue a dinamizar o aparecimento de “oportunidades ilegítimas” pela valorização do ilícito e difusão de técnicas e comportamentos desviantes.

Ora é a existência do “desvio” que legitima de facto as instituições totais como a prisão. Contudo, o olhar sobre o desvio “como parte”, fora das lógicas sociais “do todo” criam aquilo a que Foucault chama os “arquipélagos dos carcereiros”, arquipélagos institucionais no seio das instituições totais designadas por Goffman como “locais de residência e de trabalho onde um grande número de indivíduos, colocados na mesma situação e segregados do mundo exterior por um período relativamente longo, levam em conjunto uma vida reclusa cujas modalidades são explícitas e minuciosamente regulamentadas”.

Esta trajectória entre o “desvio” e a “instituição total”, além de mediada conceptualmente pelo “arquipélago dos carcereiros”, justificada pela parte, não olhando para o todo, é uma estratégia que os agentes promotores dos projectos da reinserção social dizem não resultar pela forma como está concebida, planeada e aplicada. Olhar para o desvio sem olhar para os contextos que o constroem, que o propiciam e que muitas vezes o impõe, fazendo a trajectória do desvio à prisão de forma a-crítica e não contextualizada, é uma estratégia falhada. Retomando o exemplo metafórico do Jorge Amado: serão os jovens “capitães da areia” perigosos bandidos e traficantes com uma natureza intrinsecamente criminosa? Ou explicará o contexto social de vivência daqueles jovens a rendição ao mundo do ilícito e da sobrevivência por outros meios?

A minha pergunta/hipótese é em lógica contrária: pode a educação nas prisões e os projectos de intervenção comunitária constituir mecanismos que contrariem os handicaps herdados? Pode haver uma estratégia de reinserção contextualizada e que não seja mais a afirmação de um modelo falhado e que os próprios agentes consideram obsoleto? Existem algumas experiências interessantes neste campo e, embora a maioria dessas experiências não sejam institucionais, correspondem a projectos e programas localizados e pontuais de grande utilidade. Gostaria de referenciar apenas dois exemplos: a Associação “INTEGRAR” e o projecto de Teatro do Oprimido em Coimbra. Não entrando nos pormenores dos projectos, a estratégia de ambos parece ser semelhante: a de transformar os presos em actores sociais com voz, identidade e história, assumindo como estratégia central a socialização não como um luxo mas como uma arma estratégica emancipadora. O teatro do oprimido tem uma especificidade política e cultural diferenciada, cite-se as palavras do seu criador: “No teatro do oprimido reflectimos sobre o passado, ensaiamos a sua transformação no presente, para inventarmos o futuro desejado, porque ser cidadão é transformar a realidade e viver é mudar o Mundo” (Augusto Boal). Assumindo um espaço de diálogo entre os presos e a sociedade civil, estes projectos procuram fazer o resgate de um espaço que a prisão parece esquecer: o espaço dos direitos humanos, da socialização e da verdadeira reinserção social. Sem o resgate desse espaço e sem o compromisso socialista da transformação da sociedade, a desigualdade enquanto ciclo social permanecerá intacta. E sem o desaparecimento da desigualdade, não há liberdade possível para as sociedades porque a liberdade não existe a meio termo. A desigualdade é fim. É fim do capitalismo para existir e é fim do socialismo para a fazer desaparecer

João Mineiro

 

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