Para Hélia Correia
O neoliberalismo é uma ideologia do capitalismo (da ideologia global ou geral, como quisermos, do capitalismo).
Artigo de Mário Tomé
Como o liberalismo, o militarismo, o fascismo, o nazismo, a social-democracia, etc. serão ideologias «subordinadas» ao longo do desenrolar e dos sobressaltos dos processos políticos decorrentes da evolução da produção e do mercado capitalistas que provocaram a necessidade de cobertura ideológica particular para cada situação histórica.
O neoliberalismo correspondeu à globalização do mercado, ao fim das fronteiras para as mercadorias e capitais, à financeirização como resposta às crises de sobre-produção cada vez mais frequentes, ( depressão e redução dos mercados reais e do empobrecimento relativo e absoluto das massas populares), à especulação como vector principal do mercado e criação do capital virtual que a sustenta e, como pilar ideológico central, a identificação total da democracia com o mercado e vice-versa, a resposta da sociedade às exigências sociais asseguradas pela excelência do privado e suas infindáveis formas de resposta lucrativa. A confiança no futuro e a alegria do consumo à custa da fome e inanição do mundo das margens, que por acaso é muito mais vasto que o do centro. Nada mais poderá acontecer para além da consolidação do sistema a nível global. O maior país do comunismo pôs o capitalismo no posto de comando e as directivas do comité central até lembram as proclamações de Cavaco no auge dos fundos comunitários: crescei e multiplicai as vossas fortunas, vivam os Jovens Empresários de Elevado Potencial, os famosos JEEP a desafiarem e a gozarem os Cherokee. O Estado é o Monstro, a iniciativa privada trata da saúde ao pessoal, enriquecer é virtuoso. A história finalmente chegou ao fim: o comunismo tornou-se na forma mais eficaz e avançada do capitalismo. Sempre com o Monstro ideologicamente afastado mas garante das privatizações - urgentes e indispensáveis pela mesma razão da redução do mercado global coincidente com a globalização do mercado!!! - de tudo o que mexa, viva, ou exista, e de garante da repressão necessária para a libertinagem predadora, indo desde a suspensão da democracia por 6 meses, aos patriotic acts e à tortura, do mal o menos, etc. Toda essa fase foi acompanhada de foguetes e fanfarra, viva a alegria, a história já não faz falta para nada. O desligamento dos grandes agentes financeiros, mais ainda os testas de ferro executivos do que os accionistas, da economia real, o boom da banca de investimento (que o Salazar, rato de sacristia, proibia - investimento só da banca do Estado) aventureiro mas sem consequências, pois os de baixo aguentam tudo, levou à crise do sub-prime. O que a crise global veio fazer foi obrigar os «inimigos» do monstro a desvendarem a sua dependência do mesmo e a necessidade de assegurarem o serviço público permanente à finança. A matula que liquidou sem baias nem peias as forças produtivas sem guerra - a UE foi um bocado isso - agora não tem com que pagar a economia e a especulação assumiu-se em todo o seu esplendor. Tudo é virtual mesmo as pessoas que apenas são vistas como tal quando protestam, lutam e se revoltam, pois a pobreza e o desastre alastraram. Os alicerces do mercado como garante da democracia estremecem: os cidadãos e as cidadãs questionam as bem-aventuranças, e face ao Armagedão da Dívida que os afronta, proclamam que são eles e elas quem é credor. Tudo o que é sólido se dissolve no ar disse o nosso velho Mouro referindo-se ao ímpeto transformador do capitalismo. Agora podemos repeti-lo mas quanto à avalanche destruidora. Ora isto desacreditou a ideologia neoliberal como manto diáfano da espoliação. O neoliberalismo - que também sofre uma derrota no campo da economia e na política, mantendo no entanto o comandado manu militari - prossegue na demanda do lucro máximo, aplicando-se na necessária destruição de forças produtivas. Lança ainda mais milhões na pobreza, mesmo na miséria a juntar aos que já se arrastam na miséria absoluta, liquida conquistas até agora presumidamente intocáveis; a civilização, etc. ! – passa a precisar de novos argumentos e novas formas de resposta do capital à situação extrema que ele próprio criou, pois a ideologia que lhe tem servido deixa de garantir a APSIC necessária. O pessoal começa a tornar-se incréu e a precisar de novo catecismo.
II O novo catecismo: Temos que salvar a pátria, a Europa, o mundo. E só podemos fazê-lo unidos, de mãos dadas “A BEM DA NAÇÃO”: António Saraiva, Passos Coelho, João Proença, Cavaco, Troika (e os farsantes equivalentes nos outros países da U.E.). Uma imensa corporação unida para salvar o mundo, ou seja para garantir que a liberdade de especulação não é atrapalhada por reivindicações serôdias e desactualizadas. Já não é o salve-se quem puder pois a liberdade é isso, mas a solidariedade dos trabalhadores para com o capital, pois é nele que está a salvação – perguntem à China. Os trabalhadores têm de ser capazes de largar «a sua zona de conforto», 1º Ministro dixit , e lançarem-se corajosamente, seguindo o exemplo dos corajosos do governo e da UGT, a trabalhar sem direitos e sem salário. Os mais favorecidos não são assim tanto e até são capazes de aceitar corajosamente o corte naquilo que auferem. Veja-se o próprio PR que se sujeita quase a viver à custa da pensão reduzida da mulher. Para assegurar a equidade cidadã, venda privilegiada das acções do BPN destinou-se a um fundo de maneio que só em última instância será usado. A coragem invade o país. A Constituição é importante mas não pode impedir a nossa luta salvífica. A Pátria supera tudo! Temos que ser práticos, decididos e não aceitar que questões abstractas e jurídicas atrasem o nosso desempenho e impeçam a ultrapassagem da crise. Os direitos consagrados têm de ser relaxados ao braço implacável da dívida. A Dívida é de todos, gastámos demais, fomos glutões. A situação é má mas vamos ser capazes de vencer. Os protestos e as manifestações têm o seu lugar institucional e aplaudimos os que expressam a sua opinião. Mas isso de nada serve porque só há uma saída e essa é a que o governo, mandatado pelos tecnocratas da troika, está a pôr em prática. Perguntem à Merkel e a Durão Barroso. Ninguém mais que nós sente as dificuldades que todos atravessamos. Já passámos o Bojador! seremos capazes de passar além da dor. O acordo de concertação apoiado pela UGT e rejeitado pela CGTP veio criar o quadro ideal: dá base laboral (UGT) ao assalto e dá enquadramento institucional (CGTP) ao protesto. Os que ficarem fora deste binário virtuoso estão à margem e as forças da ordem saberão actuar com a proporcionalidade costumeira, manobrando no paradoxo secular que as estimula: quanto menos direitos tiverem e quanto menos ganharem, mais eficazes são na repressão. É com desgosto, mas cientes do imperativo moral que nos orienta – a honra no pagamento das dívidas – que guiamos os portugueses não para uma aventura, mas para o enfrentamento de forças poderosas que nos escapam, não dominamos, mas vamos ser capazes de aplacar. Muitos ficarão pelo caminho, mas não foi assim ao longo da nossa gloriosa história? «Aqui ao leme sou mais do que eu», eis como se sentem os pífios tecnocratas que sustentam Passos Coelho fazendo o que lhes manda a Mafia internacional guiada pelos que levaram o Lehmon Brothers à falência e monitorizada pelas três parcas que na véspera anunciavam a sua glória financeira.. Portugueses! armem-se da Mensagem de Fernando Pessoa e transponham o portal da glória! Heróis do mar, nobre povo, nação valente e imortal. Convosco estarão os melhores da nossa elite: Cavaco Silva, Ângelo Correia, Oliveira e Costa embora tenha que nos acompanhar a partir de sua casa onde está injustamente confinado por ter ousado, Dias Loureiro apesar de num exílio voluntário por também ter ousado, Amorim trabalhando e ganhando o pão com o suor do seu rosto mostrando como se pode ir longe, Belmiro e sua ilustre descendência levando os produtores agrícolas à falência para dar leitinho praticamente de borla às crianças esfomeadas do nosso país, António Mexia cuja impetuosa iniciativa chegou ao Extremo Oriente. Exportaremos para garantir o crescimento pois o nosso heróico povo não poderia pagar o que produzíssemos e sem lucros não há crescimento; chamaremos produtividade ao aumento do tempo de trabalho e à redução do descanso e dos salários. Garantir o aumento da produtividade sair-nos-ia caro e os lucros caíam. Precisamos aumentar a produção a baixo custo. E ultrapassaremos a própria China, onde já se pensa em deslocalizar empresas para cá donde poderá exportar com vantagem. Se, como já dissemos, a Constituição não deve ser obstáculo, contamos ainda com a nossa propaganda para, se for necessário, encontrarmos apoio de massas para apagar todas as miragens que em nome da democracia travem ou impeçam o esforço patriótico que o nosso corajoso povo empreendeu
III O neoliberalismo - quem pensasse que tal não seria possível, dado o nível de violência social a que já se tinha chegado, enganou-se redondamente - agora conclama as massas para o apoio ao partido único da finança, pois só há um caminho que não é ditado por uma doutrina qualquer como há outras, mas pela inexorável materialidade e pela lógica implacável da tecnocracia. Quem manda já não é Salazar, mas o manual de gestão da crise. O confronto prepara-se, o confronto aí está anunciado. Como vai ser? Cidadãos e cidadãs que, na melhor das ilusões, confiaram na democracia embora desconfiassem de quem a gere mas certos de que a inércia a não deixasse cair, começaram a dar importância aos movimentos que procuram as raízes dentro do movimento mais vasto que finge acreditar que o tronco e as folhas crescem por si. Começam intelectuais e artistas a saltarem para as montras e para os palcos, para as páginas diversas dos media diversos, demarcando-se de intelectuais e artistas que nesses mesmos palcos e montras e media diversos se contentam com a espuma dos dias. Um certo adormecimento à sombra da democracia incorruptível deu lugar a uma angustiada insónia, despertada pela constatação de que a corrupção não é uma bactéria à espera do antibiótico mas o próprio lubrificante da democracia, sem o qual ela gripa. Só se combate seriamente a corrupção mudando a democracia. E isso só é possível desde que quem trabalha, quem cria, seja dono da economia para se libertar da sua sujeição; eis a suspeita que cresce e se consolida, abrindo um campo enorme à luta dos espoliados, dos humilhados e ofendidos. Sentem-se então mais próximos fisicamente daqueles para quem olhavam com simpatia mas distanciamento. Os indignados, os movimentos radicais, os partidos que estão dentro para melhor poderem correr por fora. E, interrogando-se ainda se é possível sair disto ganhando a liberdade e a cidadania, ei-los que nos dão, aos radicais, alento que reforça a nossa convicção que se alimenta da empiria e do estudo contraditório, dialéctico, da história e da sociedade, tendo como única premissa inalterável a prioridade absoluta da pessoa humana.
Deixo-vos com um belo poema de Hélia Correia que saiu no Público de domingo: é que não há tempo a perder e a palavra torna-se força material. O poema termina com uma interrogação: como se desfaz o feitiço? Só posso dizer-lhe que ela já começou a desfazê-lo.
Hélia Correia «Indignação»
O horror calou tudo, declararam. Depois de Auschwitz Continuámos a falar, porém – sem ambição. Reconhecendo o inalcançável, Baixando o olhar. Pois o que pode a fala? Por que dizem Que, cantada, faz de arma? Se com ela não nos municiamos. Se, com a morte de uma Grécia antiga, Perdemos o condão de nomear Deuses e sentimentos e até As pequenas moléculas, enfim, nomear o real Que, naquele caso, incluía o tremendo e a maravilha?
Esses, os que levavam para a praça Quezílias, sim, projectos e também, E, sobretudo, uma noção de polis E de uma paridade vigiada, Severamente vigiada. Os Gregos, esses Que narravam o medo para que o medo Se tornasse visível, prisioneiro Na teia do poema, Se não compreensível, pelo menos Transformado em espectáculo – essa Grécia, Essa Atenas perfeita, mais perfeita Que qualquer utopia, a rapariga Inesperadamente transformada Numa ruína, Esses – que não existem
E nos deixaram assustados, sós, Sob o sem-rosto, sós, Sem as ferramentas adequadas, Sem pensamento, Sem esses deuses temperamentais Que tomavam partido nos combates, Nós, os abandonados, os que não Sabem sequer como aplacar E a quem, Nós, os emudecidos, Irmanados com os sem-terra, nós, Os futuramente esfomeados, Bárbaros com os pés no alcatrão, Bebedores de petróleo, como pode
De novo a praça, A Ágora, juntar-nos?
Transformados em porcos, por feitiço, Pela malevolência, Exactamente Como na Odisseia, Não sabemos - e os Gregos esqueceram – Como é que tal feitiço Se desfaz?
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