Do que falamos afinal? Versão para impressão
Quarta, 06 Junho 2012

 

austerity_ahead

1. De 2007 para cá os povos ficaram a saber que a fatura da crise, causada pelo capital financeiro, só os terá a eles como contribuintes. Por mais que o calor do momento tenha levado os mais diversos porta-vozes do stablisment a puxar orelhas aos bancos pelo seu mau-comportamento, e estes por sua vez, tenham feito gazeta a Davos por vergonha, nada mudou na correlação de forças. As mais diversas promessas, da taxa Tobin ao fim dos off-shores, foi para cidadão ouvir, e nada mais.
2. A austeridade mais do que uma orientação de política económica e orçamental, tornou-se a receita tipo para a pretensa saída da crise. Combinada com um crescente autoritarismo - estatal, patronal, racial (…) se quisermos social ou societal – tem formulado os traços do regime que hoje a burguesia impõe aos trabalhadores europeus, o austeristarismo. O seu resultado ainda não é final, sendo de sublinhar que tem sido moldado com uma Armada em risco de naufrágio, em permanente nublosa – característico das crises do capitalismo – e com um forte enfoque na acumulação brutal de capital. Como é que estes fenómenos se operam? A resposta dificilmente será definitiva e imutável e essa preocupação deve ser parte integrante da nossa discussão permanente. Procuro com estes pontos dar o meu contributo.
3. A culpabilização dos mercados financeiros e da ganância dos banqueiros, transformou-se numa retórica de culpabilização dos comuns e de “obrigatoriedade” dos estados adotarem medidas intervencionistas de salvação do capital financeiro, em detrimento da economia real e dos povos. A velocidade com que se passou do julgamento dos administradores da Goldman Sachs para a necessidade de reduzir a despesa pública, foi estonteante. A atenção pública foi de forma célere reorientada para a necessidade de reduzir os serviços públicos, os funcionários públicos, cortar os salários e pôr fim às “gorduras do estado”, caso contrário não se conseguiria “acalmar os mercados” e recuperar a confiança dos credores. Isto leva-nos a uma primeira análise: A propaganda. A burguesia mobilizou todos os seus recursos para construir um cenário de legitimação, operacionalizado através do medo e da chantagem, para implementar o seu programa de terror social. Os aparelhos ideológicos foram bem oleados, os comentadores, os especialistas das mais diversas áreas, da televisão aos jornais, da academia ao café de bairro, todos os autorizados do status quo foram arregimentados para que o programa da troika e a prioridade do pagamento da dívida fossem encarados como solução de via única.
4. Não há exploração e opressão eficaz sem divisão dos explorados e dos oprimidos, a história da luta de classes dixit. Já vão longe os tempos em que a política se disputava à escala nacional. Dentro da União Europeia a tendência é que cada trave mestra orientadora do projeto europeu, seja discutida, imposta e disputada à escala transnacional. Assim também o é na hegemonização de um preconceito ou estereótipo e das demais variantes do racismo.
A burguesia europeia tem consciência que o pior que lhes poderia acontecer, seria uma união dos explorados dos demais territórios do velho continente. Para garantir travagens a esse processo, a narrativa da preguiça e da inaptidão dos países do sul é essencial para dividir consciências. O ressurgimento da superioridade e inferioridade de raças, que se pensava há muito enterrada, foi novamente lançada. O Mein Kampf de hoje distribui os seus capítulos pelos tecnocratas do BCE, pelo governo Merkel e pelos porta-vozes da banca alemã, especialmente o DeutscheBank.
Dificilmente veremos panzers nas demais capitais europeias, mas já ouvimos o blitzkrieg narrativo de Merkel e dos seus correligionários. Mas se há guerra onde está o exército e os seus voluntários? Sabemos que a guerra imperial hoje é do capital contra os povos, no entanto, para que esta estratégia vingue, é bom que os trabalhadores do norte continuem a ser enganados, pensando que o esforço do seu trabalho e os seus impostos contribuem para pagar a indolência e as siestas dos malandros do sul.    
5. O autoritarismo é um conceito forte, relembra-nos as cenas mais negras do séc. XX. Será demasiado abusado emprega-lo de forma generalizada? Não de todo. Recuemos uns anos e lembremo-nos do que produziu o frenesim da guerra contro o inimigo invisível: o combate ao terrorismo. Este cenário de medo deu a oportunidade chave à burguesia para legitimar invasões, aumentar orçamentos militares e atacar duramente as liberdades individuais dos cidadãos, o patriot act é apenas o exemplo mais visível, e que mais facilmente nos aviva a memória. Ao que se lhe pode juntar as demais formas de espionagem, detenção indeterminada, controlo e invasão da individualidade que foram tornadas legais. Esse passo já tinha sido dado. Já na altura se esboçam os comentários sobre o perigo do autoritarismo. E o que temos hoje? É de natureza e de visibilidade diferente. Do ponto vista legal já diversas leis foram alteradas, o caso de Espanha é o mais gritante e elucidativo, ao leque dos potenciais terroristas hoje junta-se-lhe o manifestante. A somar à forma como os braças repressivos do estado têm atuado um pouco por toda a Europa, o aviso da “tolerância zero” que a PSP tinha prometido para a manifestação do 25 de Abril, pode bem servir como quadro do espírito dos tempos nos demais países do continente, onde a revolta ganha voz e espaço. Ao mesmo tempo que se vai beliscando a liberdade de imprensa, já há muito ameaçada pelos interesses do grande capital que controla as principais publicações e meios de comunicação social. Mas, a face mais bruta e crua desta enunciação é a suspensão do Estado de Direito e da soberania popular. O tribunal constitucional português passou a ser um órgão praticamente inútil na defesa dos preceitos constitucionais, qualquer violação da lei mãe, é ignorada e justificada à luz do “estado de exceção”. O cunho deste termo é elucidativo do autoritarismo. Quando se suspendem direitos, liberdades e garantias, se assaltam salários, apoios sociais e pensões, contra os pressupostos legais, em nome da dívida, sabemos que a democracia pode bem ser atropelada em nome dos rendimentos do capital.
As reuniões ocasionais dos governadores do protetorado das repúblicas portuguesa, grega ou irlandesa, com os respetivos executantes nacionais, demonstram que os não eleitos têm mais força que os eleitos. Que a vontade dos mercados se sobrepõe à sustentabilidade das práticas democráticas. A soberania popular tornou-se algo que pode ser suspenso. Quem ousar por outra via é torpedeado, classificado de extremista, ameaçado e boicotado. É isso que assistimos com a situação grega, e até (!) com algumas promessas eleitorais francesas.  A chantagem, a imposição pela força, a descredibilização e o afunilamento de alternativas são o ex libris do austeristarismo.
6. A acumulação brutal de capital que hoje assistimos, opera-se através da criação de um gigantesco exército social de reserva, do incremento da taxação dos rendimentos do trabalho e do consumo e da precarização das relações sociais de produção, com o epicentro na dívida. Antes de a crise estalar o capital financeiro tinha o seu enfoque na economia de casino, do imobiliário aos mais diversos fundos de risco, os brutais rendimentos transformaram-se em lixo tóxico e em bolhas financeiras. A acumulação especulativa através do ataque às dívidas soberanas tornou-se o alvo preferencial e altamente rentável para a burguesia internacional. Para que o negócio se mantenha próspero precisa-se, no entanto, que se tenha um povo inteiro a produzir para ele. É para isso, e nada mais, que serviram os tão famosos PEC’s e hoje os programas de reajustamento. A riqueza produzida pelos povos é transferida diretamente para o pagamento da dívida e os seus juros. Toda a conversa da insustentabilidade dos serviços públicos e do Estado Social tem nesta decisão política a sua fonte, é por isso que centramos na renegociação e na anulação da dívida odiosa o nosso combate.  
7. O fanatismo ideológico que opera politicamente ao centro, combinado com décadas de capitulação da social-democracia tem provocado desgastes e erosões político-partidárias em diversos países. Trazendo novos fenómenos sociais e políticos para cima do tabuleiro, à esquerda e à direita. A Grécia é o caso mais completo. A SYRIZA disputa o primeiro lugar, o PASOK esfuma-se e a Nova Democracia terá um dos seus piores resultados eleitorais no pódio, concomitantemente, os neo-nazis entraram no Parlamento pela primeira vez. Em França, a Front de Gauche de Mélenchon repôs a esquerda socialista na pole position, Sarkozy perdeu as eleições para Hollande, numa clara negação do rumo económico e europeu e a Frente Nacional de Marine Le Pen conquistou as melhores votações de sempre. Em Espanha, apesar da vitória do PP, a Izquierda Unida tem somado vitórias importantes. Na Holanda e na Irlanda a esquerda anti-austeridade está em segundo lugar nas sondagens – Sinn Féin e Partido Socialista (não confundir com o social-democrata Partido Trabalhista). Por último, na Alemanha, Merkel e os seus aliados liberais têm acumulado derrotadas sucessivas nas regionais.
E agora o que fazer com isto? Ao mesmo tempo que os europeus têm vivido tempos de catástrofe social, têm vindo a rejeitar a política da austeridade, demonstrando uma admirável capacidade de resistência e de resposta social. Não é de todo despropositado falar em mudanças radicais num futuro próximo, e sim, a hipótese revolucionária está em cima da mesa, mesmo que não se concretize. Cabe à esquerda do socialismo e a nós comunistas, construir as pontes necessárias, sem sectarismo nem centrismo, para estar à altura da condução da ânsia de mudança e da raiva popular, conscientes que se não o fizermos os vendedores de banha da cobra o farão, onde também se incluem os neofascistas. Só um governo de esquerda, sem vergonha da sua tradição e convicta do seu projeto poderá vencer a ditadura da dívida!

Fabian Figueiredo

 

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