É um milagre, senhor, é um milagre! |
Segunda, 18 Novembro 2013 | |||
Perante um país em queda livre e um povo desamparado é sempre prudente, não vá o diabo tecê-las e a populaça reagir, recorrer ao vernáculo cristão e ao sempre fiel e eficiente conceito de 'esperança'. Por isso, o Governo utiliza estrategicamente palavras como «recuperação», «momento de viragem», «melhoria» e até «milagre». Os meios de comunicação social apressam-se a difundir estas ideias e o povo vai mantendo a angústia e o desespero em lume brando porque agora é que é, o senhor Ministro falou em recuperação. Estamos no bom caminho. Parece que os indicadores económicos estão a melhorar. Parece que a taxa de desemprego baixou para 15,6% no trimestre passado. Parece que o Produto Interno Bruto Português subiu 0,2%. Parece que o Governo vai conseguir manter ou até baixar o défice previsto. Parece que vamos voltar aos mercados não tarda. Dizem eles e os seus lacaios que "os sinais positivos são inequívocos". Vivemos um milagre económico. Que importa portanto que três milhões de Portugueses vivam hoje no limiar da pobreza? Que importa a destruição da escola pública? Que importa que Portugal seja o país da Europa com mais crianças carenciadas muito acima de países como a Eslováquia, Eslovénia ou Malta? Que importa que cada vez mais a Saúde seja um negócio? Que importa que nos últimos dois anos perto de 250 mil pessoas tenham sido forçadas a abandonar o seu país e as suas famílias? Que importa se mais de 112 mil jovens, muitos altamente qualificados, tenham emigrado no último ano? Aos mercados, ao Governo, ao FMI nada disso importa. Não importa que a taxa de desemprego resulte da divisão do total de desempregados pela população activa e que apesar de esta baixar, o número de desempregados aumente. Não importa que o emprego sazonal tenha contribuído para a alteração, transitória e precária desta taxa. Não importa que, na realidade, a dívida continue a aumentar e tenha atingido agora 131,3% do PIB sendo a terceira maior da Europa. Não importam os frigoríficos vazios, os estômagos a roncar. Não importam as casas sem luz nem as crianças com frio. Não importam as pessoas que perderam tudo e a quem nada mais resta a não ser a rua. Não importam as vidas estragadas, os futuros suspensos, a miséria instalada. Não importa porque o milagre económico de que falam se alimenta precisamente da miséria do povo. Quanto mais empobrecidos e desesperados, mais glorioso será o milagre. Mercado nosso que estais nos Céus, santificado seja o vosso nome! Já estava na hora dos gloriosos mercados ganharem o tão merecido lugar na terra. Venha a nós o vosso Reino! Que o milagre da transferência de capitais ocorra sem mais demora, anseiam os apóstolos dos mercados. O lucro nosso de cada dia dai-nos hoje, rezam as bíblias dos que vendidos ao poder financeiro nos condenam a uma pobreza que devemos considerar altruísta e abnegada. A ideia da falta de alternativa às políticas da austeridade incessantemente repetida faz parte da homilia e insinua-se no senso comum e nos discursos correntes. Mas a austeridade, a pobreza, a miséria não são irreversíveis. O inferno na terra não é a solução. O milagre económico que nos querem impor cairá por terra quando surgir na consciência colectiva a ideia de que o lucro do trabalho aos trabalhadores é devido "(...) a divisão do trabalho, não pode ser abolida extirpando do cérebro essa representação geral, mas unicamente através de uma nova submissão das forças objectivas e a abolição da divisão do trabalho por parte dos indivíduos."* Sandra Mestre Cunha Referências * Karl Marx e Friedrich Engels (1846) - A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. Imagem: "In God We Trust" - flickr.com/hammer51012
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