O fel do Rangel Versão para impressão
Sexta, 26 Dezembro 2008

Corria o início do Outono de 1985. A campanha das legislativas estava a chegar ao fim. Cavaco iria ganhar, ainda com maioria relativa: uns "míseros" 29 %, depois do afundanço do governo do bloco central PS-PSD em que os irmãos siameses da política portuguesa assumiram, sem complexos, o parentesco. Em Outubro o PS caiu para pouco mais de 20 %, emergindo o fogo-fátuo do PRD eanista, com 18 %. Os últimos dias de campanha legislativa sofriam já a dramatização das presidenciais de Janeiro de 1986, nas quais Mário Soares viria a derrotar Freitas do Amaral "por uma unha negra"...

À nossa escala, a UDP jogava uma cartada decisiva: a reconquista do deputado perdido em 1983. Para tanto não bastava uma política revolucionária clara face à crise - o FMI aterrava na Portela todas as semanas. Impunha-se pensamento político, com P grande, em relação às presidenciais. Após aceso debate interno, a UDP inclinava-se para declarar o apoio a Maria de Lurdes Pintasilgo - foi o único partido político a fazê-lo, o que nos deve orgulhar. Dessa vez tivemos não só "razão antes do tempo"... mas também no tempo certo. Dúvidas subsistiam sobre o timing da declaração de apoio: seguramente antes do dia das legislativas, mas com a justa preocupação de "não estreitar" a candidatura presidencial nem ferir desnecessariamente susceptibilidades.

Nas legislativas de 1985, a UDP ensaiou uma excepcional concentração de forças em Lisboa. Aos 33 anos, "requisitado" pela primeira vez ao Alentejo, encontrei-me com um "vintão" Luís Fazenda, vindo das Beiras, no comité de redacção do jornal "Unir o Povo", a quem cabia divulgar o apoio da UDP a Pintasilgo. A direcção da UDP encarregou-me de sondar a candidatura presidencial sobre a forma e a oportunidade deste anúncio.

Com alguma timidez, desci a rua de São Bento e dirigi-me aos velhinhos estúdios do Quelhas da RDP, à procura de um jornalista, conotado à esquerda, de nome Emídio Rangel - director de comunicação (ou nome equivalente) da campanha de Pintasilgo. Foi uma conversa cordial que se repetiu, pelo menos, uma vez. Rangel agradeceu o apoio da UDP e mostrou apreço pelo nosso cuidado em não "queimar" a candidatura presidencial. Poucos dias depois, o "Unir o Povo" titulou um sóbrio mas esclarecedor "Pintasilgo na corrida", da autoria do Luís Fazenda.

Em termos pessoais, Rangel manifestou até simpatia pela nossa campanha mas escusou-se a subscrever o manifesto "Tomé ao Parlamento", com a justificação (plausível) da sua função na candidatura de Pintasilgo. Outros o subscreveram: eu e a Eduarda Monteiro tivemos a honra de ouvir o SIM empenhado de Zeca Afonso (a sua última posição política pública, em que sublinhou a lucidez do nosso apoio a Pintasilgo), de Augusto Abelaira ou de Rui Grácio e mesmo o NÃO amargurado e dilacerado de um Mário Dionísio.

O desfecho é conhecido: Tomé ficou a 238 votos de regressar ao parlamento, em grande medida graças às lágrimas de Manuela Eanes pelos "pobrezinhos". Pintasilgo, sob a investida conjunta do PRD e do PCP, coligados em torno de Salgado Zenha, ficou-se pelos 7%, quando meses antes todas as sondagens a confirmavam como melhor colocada para derrotar Freitas. Quem aproveitou, na segunda volta, foi Mário Soares.

Recordo este pedaço da nossa história política recente para sublinhar o meu repúdio pelo artigo do dito Sr. Rangel no "Correio da Manhã" de 20/12/2008, intitulado "Bloco de Esquerda", onde destila toda a sua biliose sobre "esta mixórdia da extrema-esquerda pura, dura, obtusa e anacrónica", "marxistas-leninistas de tendências maoístas e trotskistas de duas tendências, uma mais moderada do que a outra", Política XXI e Renovadores Comunistas, enfim, "a verdadeira salada sino/russa".

A asneira e a exploração da ignorância são grátis. Mas apetece recordar que, há pouco mais de vinte anos, Rangel não enjeitava o apoio da UDP e até manifestava (baixinho, é certo...) a sua simpatia pela eleição de Mário Tomé. Sem esquecer que Maria de Lurdes Pintasilgo, cujo carisma foi explorado por tantos arrivistas, foi uma entusiasta do projecto do Bloco de Esquerda que acarinhou até ao fim dos seus dias.

A verdadeira motivação do artigo do "Correio da Manhã" é o recente Fórum "Democracia e Serviços Públicos": "Manuel Alegre chamou-lhe a federação das esquerdas. Imaginem só, das esquerdas inteligente, moderna e progressista". É inegável o incómodo de Rangel e dos seus patronos perante um facto novo na esquerda portuguesa. Porque será que estes arautos pós-modernos da globalização não se levam a sério quando passam a vida a repetir que "o mundo mudou"? E vai mudar ainda mais na vertigem da crise financeira, económica, cultural, política e civilizacional do neoliberalismo.

O intuito divisionista em relação ao Bloco é por demais canhestro. E as profecias da desgraça sobre "o que aconteceria a Portugal se, por exemplo, o Bloco de Esquerda tivesse ou viesse a ter responsabilidades de governo" só demonstram a estreiteza dos seus cânones democráticos. Ele tem é saudades dos tempos em que Tomé ficava a 238 votos ou Louçã a 92 do Parlamento...

O próprio Rangel também mudou e muito...

Alberto Matos

 

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