Os donos do regime |
Domingo, 18 Outubro 2009 | |||
O tema da governabilidade singrou no debate das eleições para a Assembleia da República. O tema surge por pressão dos media, induzidos pelos estados-maiores dos partidos centrais. Desta vez, muito em contramão aos sentimentos dos cidadãos que repudiam qualquer maioria absoluta que neutralize um papel mais activo no Parlamento. Artigo de Luís Fazenda, publicado em A Comuna 20 1. Cabe perguntar, que se entende por governabilidade? Aqui a política é mera aritmética: quem, por si ou com outras formações garante a maioria parlamentar, ou quem se propõe associar-se a outros mais fortes para o mesmo efeito. Não se trata de discutir um "bom" governo, ou a intencionalidade dele, simplesmente o poder pelo poder. Lateralmente, pode alegar-se a propensão de um ou outro partido para "ser" governo, ou se legitimamente um partido é "obrigado" a participar de um governo mesmo que seja "contra-natura". O traço comum da "opinião-feita" é desvalorizar a oposição, e até a escolha dos eleitores por uma oposição que os comprometa, em nome de um acordo qualquer de poder que os trai. As eleições num regime democrático concorrem para a formação da vontade popular, para a realização da soberania dos cidadãos! Escolhem-se as políticas e os protagonistas. Tudo o mais são formas de pressão e manipulação da liberdade das decisões. O parlamento forma governos de minoria, de maioria, ou até de minoria empatada (uma originalidade nacional). Isso só depende dos compromissos dos representantes delegados da soberania popular. Não depende, já se sabe, dos directores dos jornais. Os deputados e deputadas vinculam-se aos interesses sociais, às várias classes, aos programas, aos percursos dos combates políticos que fazem as memórias activas da luta em cada formação social. 2. O grau de venalidade na política democrático-burguesa é de tal ordem que a "elite dos fazedores de opinião" até acha que isso dos programas e compromissos é um pouco o exotismo da coisa, um colorido festeiro, nada para levar a sério, porque a seguir à contagem dos votos tudo seria possível. Campeia o pragmatismo sem princípios. Quem quer que tenha princípios como referentes, mesmo princípios actualizados e activos com realidade é crismado de imobilista. É certo que provoca horror perceber a luta política como uma religião ética, mas também ninguém pode tolerar que o código da traficância política seja a regra de combate, não escrita, do regime vigente. É, sem dúvida, um sinal dos tempos de apodrecimento da elite económico-política, que se institui como classe dominante. Os períodos de forte corrupção económica convivem com a corrupção política. 3. Curiosamente, aqueles que exigem aos partidos minoritários que contribuam para a "governabilidade", mesmo em sacrifício dos seus eleitores e dos seus programas, impõem também, como uma espécie de agenda de pedra, um conjunto de requisitos. A saber, para se ser "agente" da governabilidade é obrigatório não questionar a NATO ou qualquer outra organização internacional de que o país seja parte, é curricular o seguidismo à economia de mercado. Não é nem sequer aceitável questionar as orientações das organizações internacionais, designadamente da União Europeia. E quanto à economia de mercado, é preciso submissões fortes ao modelo privatizador. A sentença é esta. Não é a sentença do PS. Foi a sentença que ditaram ao PS e que o PS quer ditar aos outros. 4. O paradoxo constitucional reside em que a Lei Fundamental não integrou nenhuma organização internacional e até prevê a dissolução dos blocos militares. E sobre a organização económica é receptiva a todas as formas de propriedade: pública, privada, social e cooperativa. Os chamados "requisitos de governabilidade" não decorrem de nenhum comando constitucional. Os impositores desses pressupostos de governação têm como suas leis fundamentais os tratados da NATO e o Tratado da União Europeia. Não interessa aqui reduzir o assunto à questão da soberania nacional, mas é manifesta a violação grosseira da democracia constitucional. Os tratadistas anti-constitucionais, embora não assumidos, levam até mais longe a sua ortodoxia ultra-liberal. Tornou-se comum nesse discurso político o argumento de que estado de direito é sinónimo de irreversibilidade de privatizações. Veja-se o burburinho que uma certa direita fez com a nacionalização do BPN, não porque o estado estivesse a socializar prejuízos mas pela própria ideia de apropriação pública. Ora, o estado de direito pressupõe a democracia política, as liberdades individuais, o direito de defesa individual e colectiva contra o abuso do poder, mas não postula o predomínio e a imutabilidade da propriedade privada dos sectores económicos fundamentais. Atrevem-se a dizer que a França e Alemanha, que detiveram fortíssimas nacionalizações no pós-guerra e até há poucos anos, não eram estados de direito? A participação em qualquer governo tem de estar submetida à malha constitucional, neste quadro histórico, e sem cedência às imposições que são alheias à Constituição de 76. 5. Tem sido o PS que formalmente mais tem pressionado o Bloco com a obrigação da governabilidade e com os pressupostos internacionais da governação, já aqui referidos. Percebe-se que o faça para salvar a pele e o poder numa estafada retórica coligacionista. Percebe-se que o faça atendendo ao quadro político e ao posicionamento das várias forças. Percebe-se, sobretudo, quando o centro liberal veste o casaco eleitoral da esquerda. A gestão governista do PS, ao contrário do que aconteceu com os conservadores, agravou a sua crise de identidade, a sua crise estratégica. Esse é o drama do social-liberalismo: socialista de nome, liberais na prática. A aposta numa Europa autónoma e social foi chão que já deu uvas. A Europa política é completamente pró-americana e desmantela gradualmente o estado social. O PS subjuga-se à onda internacional, perdendo a esquerda em Portugal. Sem restrições ao poder do capital financeiro, acompanhando a barbárie da crise capitalista, o seu pseudo-centrismo ideológico não tem referente político (que acabou quando finaram o "socialismo democrático") nem sequer património histórico na social-democracia que reivindicam. Como é claro o PS está próximo do PSD e bem longe do Bloco de Esquerda. Em abstracto, o BE não tem reservas a fazer parte de um governo e não desconhece que compromissos podem exigir encontros a meio caminho. Mas nunca com os pressupostos impostos e a bênção de Bruxelas, à margem da nossa leitura constitucional, nem com "governabilidades" de sócio-menor de um modelo privatizador. Como o tempo mostrará é o PS que terá dificuldades em explicar a sua identidade e propósitos, como acontece com os seus congéneres nos principais países da União Europeia. Não será certamente o Bloco de Esquerda a ter de se justificar porque não é parte de um governo liberal aos eleitores e militantes da causa social. Para abrir caminho a um governo de esquerda, entre outros factores que aqui não se analisam, é forçoso romper com as políticas liberais e combater a globalização hegemónica. Isso é que é política socialista do futuro sem nada a ver com URSS's passadas ou com Chinas de hoje. Socialismo, democracia, liberdade. Como o povo determinar, aqui e pela Europa. 6. Os grandes fazedores das regras de quem pode ou não ser governo, e como, que o despejam todos os dias no menu da ideologia dominante, são os titulares do poder económico que se impõem ao poder político democrático. Eles são os donos do regime. A governabilidade que pode interessar aos trabalhadores e a todos os prejudicados pelo neo-liberalismo será a emancipação de tais donos, num regime constitucional dos "de baixo". Dizia-se que isso é quando o povo mais ordena. Luís Fazenda
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A Comuna 33 e 34
A Comuna 34 (II semestre 2015) "Luta social e crise política no Brasil" | Editorial | ISSUU | PDF
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