Rendimento Socialmente Imprescindível Versão para impressão
Domingo, 27 Junho 2010
A história mostra-nos que o homem, como ser consciente, é susceptível de todas as transformações persistindo, aliás, imperiosamente em todas elas a sua natureza animal, a besta, como muitas vezes na rudeza da frase o denominam” (Manuel de Arriaga)

 
A esquerda, tendo noção da ciclicidade das crises do capitalismo, tem também noção que, com as crises sociais que daí advêm, existe um aumento de demagogia que produz uma divisão social entre as classes mais baixas e, por sua vez, dentro das próprias classes baixas: entre empregados e desempregados, entre desempregados que recebem apoio e não recebem apoio, entre desempregados que recebem mais ou menos apoio.

 

Artigo de Nuno Moniz e Francisco Silva


Conseguimos comprovar pela experiência actual que “sempre que as pessoas não agem sob os imperativos das suas necessidades naturais, dos hábitos ou pela coacção da violência, as suas acções dependem daquilo que elas sabem, dos seus conhecimentos”[1]. Ou seja, o sentimento de inveja que destrói a possibilidade de construção de laços intra-classes advêm do conhecimento “de causa” que é transmitido ou adquirido nos vários espaços de formação de opinião, nomeada e primariamente no âmbito familiar ou de círculo de proximidade relacional e através dos media.


Este processo de formação de opinião é influenciado através de três canais distintos: o discurso oficial, o discurso dos media e o senso comum.


Através do discurso oficial, nomeadamente o parlamentar, conseguimos perceber quem o sustenta. Tanto o CDS/PP como o PSD têm, com mais ou menos clareza, ‘cavalgado’ nesta situação, aproveitando-se da sua exposição mediática para retirar dividendos através de um discurso populista e demagógico. Populista porque se compreende dentro de uma estratégia de acumular forças eleitorais e demagógico porque não se fundamenta em dados reais, mas sim num ensaio metafísico da existência de “agentes fraudulentos” baseado apenas no facto de estarmos a falar de pessoas com um nível de carência económica considerável, com o objectivo de perpetuar este discurso fácil. Pudemos observar na Assembleia da República, durante dois dias seguidos, a tentativa de implementação de um Tributo Solidário, por parte do PSD, que significaria trabalho escravo, e as propostas do CDS/PP sobre o RSI. Neste tipo de discurso, podemos ainda observar o papel do PS que tanto não hesita em defender a medida como aproveita, em altura de cortes, para sucumbir à pressão deste discurso populista.


O discurso dos media tem um comportamento e um objectivo claro: disseminação e manutenção da divisão e do conflito social. Insere-se perfeitamente na ideia de que a função primordial da indústria da comunicação, numa sociedade capitalista, consiste em “desorganizar e desmoralizar os submetidos” 1 mas que também “neutraliza os dominados, por um lado, e consolida, por outro, a solidariedade com a classe dominante e com os interesses desta” 1.


Portanto, conseguimos depreender que a disseminação das ideias individualistas, de isolamento e fragmentação social, têm um objectivo político claro, e neste caso, no RSI, através de um pequeno exercício poderemos comprovar tal facto e função: quem maioritariamente opina e divulga informações e factos sobre os beneficiários deste apoio social são pessoas que não o recebem nem têm relacionamento directo com alguém que o  receba, pondo assim de parte, qualquer elo de ligação com o real  e mantendo, assim, o silenciamento e a não-imagem dos casos em concreto. Tal facto por si só, demonstra no dia-a-dia a sua importância no discurso do senso comum.


Sobre esse, tendo em conta a ideia que os espaços de formação de opinião passam em grande parte pelo ambiente familiar, relacional, laboral e pelos meios de comunicação, é de fácil compreensão a construção deste fenómeno anti-social que não é de maneira nenhuma inocente. O objectivo capitalista de fragmentação atinge-se então, pois será principalmente nas classes trabalhadoras, que o discurso é mais disseminado entre si.


Após esta distinção de tipos de comunicação que perpetuam o discurso de divisão social, é importante realçar que, novamente, a excepção cria a regra e a regra cria o senso comum que se instalou. O discurso dos “malandros” em si só já é falso: 69% dos titulares são mulheres, portanto, um pormenor exacto seria referirem-se a “malandras”. Quando se diz que essas pessoas não querem trabalhar é pertinente introduzir o facto que um terço das pessoas que recebem esse apoio social trabalham e que mais de metade dos beneficiários são ora crianças com menos de 18 anos ou trabalhadores aposentados. É também um facto importante que, no que diz respeito à fiscalização, o RSI é o subsídio com menor taxa de fraude e que pressupõe o levantamento do sigilo bancário.

 

Mais do que um complemento solidário, é um complemento necessário: a principal finalidade do RSI é garantir a dignidade das pessoas que dele necessitam, ao mesmo tempo, consegue nivelar o mercado de trabalho. Estas pessoas vivem em condições sociais frágeis e a Direita tem plena consciência que se não recebessem o RSI estariam disponíveis para trabalhar a qualquer custo, o que inevitavelmente reduziria o salário dos que actualmente estão empregados.

 

Muitas vezes se queixam destes “malandros” que vivem “ à conta do Orçamento”.Quando ouvimos trabalhadores atacar este rendimento social de inserção, estão sem dúvida a atacar-se a si próprios, fazendo o jogo dos que pretendem, com a divisão e o ódio social, aniquilar os direitos que adquiriram.

O papel da esquerda é, então, claro mas não imediato. Claro porque torna-se óbvia a necessidade do desenvolvimento de uma consciência diferenciada que surja da crítica à sociedade capitalista e ao individualismo. Não imediato porque implica a disseminação de informação e luta política e cultural com as classes burguesas e os media. Este contraponto político e esta crítica da cultura actual é fundamental para o surgimento de um novo pólo social que balanceie forças com o discurso hegemónico que aumenta o conflito social e impulsiona a competição no lugar da cooperação. Só assumindo uma identidade de contra-corrente do pensamento populista e demagógico que parte de uma classe política neo-liberal, disseminada pelos media seja por selecção, a fulanização ou o silenciamento, podemos compreender um espaço capaz de acumular forças e que tenha capacidade para disputar espaço político concreto na sociedade com o objectivo de construir solidariedade e destroçar o individualismo.

Com o fim de RSI e do Salário Mínimo como proposto pela Direita, abre-se o caminho para que os portugueses trabalhem apenas pelo suficiente para adquirirem a comida que os manterá a trabalhar no dia seguinte. Quando somos governados por políticos que atingem os seus cargos sem olhar a meios, naturalmente que o que eles esperam dos portugueses é que trabalhem a qualquer custo.

 

Nuno Moniz e Francisco Silva




[1] Romano, Vicente, “A Formação da Mentalidade Submissa” (Deriva, 2006)

 

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