A história mostra-nos que o homem, como ser consciente, é
susceptível de todas as transformações persistindo, aliás, imperiosamente em todas
elas a sua natureza animal, a besta, como muitas vezes na rudeza da frase o
denominam” (Manuel de Arriaga)
A esquerda, tendo noção da ciclicidade das crises do capitalismo, tem também
noção que, com as crises sociais que daí advêm, existe um aumento de demagogia
que produz uma divisão social entre as classes mais baixas e, por sua vez,
dentro das próprias classes baixas: entre empregados e desempregados, entre
desempregados que recebem apoio e não recebem apoio, entre desempregados que
recebem mais ou menos apoio.
Artigo de Nuno Moniz e Francisco Silva
Conseguimos comprovar pela experiência actual que “sempre que as pessoas não
agem sob os imperativos das suas necessidades naturais, dos hábitos ou pela
coacção da violência, as suas acções dependem daquilo que elas sabem, dos seus
conhecimentos”[1].
Ou seja, o sentimento de inveja que destrói a possibilidade de construção de
laços intra-classes advêm do conhecimento “de causa” que é transmitido ou
adquirido nos vários espaços de formação de opinião, nomeada e primariamente no
âmbito familiar ou de círculo de proximidade relacional e através dos media.
Este processo de formação de opinião é influenciado através de três canais
distintos: o discurso oficial, o discurso dos media e o senso comum.
Através do discurso oficial, nomeadamente o parlamentar, conseguimos perceber
quem o sustenta. Tanto o CDS/PP como o PSD têm, com mais ou menos clareza,
‘cavalgado’ nesta situação, aproveitando-se da sua exposição mediática para
retirar dividendos através de um discurso populista e demagógico. Populista
porque se compreende dentro de uma estratégia de acumular forças eleitorais e
demagógico porque não se fundamenta em dados reais, mas sim num ensaio
metafísico da existência de “agentes fraudulentos” baseado apenas no facto de
estarmos a falar de pessoas com um nível de carência económica considerável,
com o objectivo de perpetuar este discurso fácil. Pudemos observar na
Assembleia da República, durante dois dias seguidos, a tentativa de
implementação de um Tributo Solidário, por parte do PSD, que significaria
trabalho escravo, e as propostas do CDS/PP sobre o RSI. Neste tipo de discurso,
podemos ainda observar o papel do PS que tanto não hesita em defender a medida
como aproveita, em altura de cortes, para sucumbir à pressão deste discurso
populista.
O discurso dos media tem um comportamento e um objectivo claro: disseminação e
manutenção da divisão e do conflito social. Insere-se perfeitamente na ideia de
que a função primordial da indústria da comunicação, numa sociedade
capitalista, consiste em “desorganizar e desmoralizar os submetidos” 1 mas que
também “neutraliza os dominados, por um lado, e consolida, por outro, a
solidariedade com a classe dominante e com os interesses desta” 1.
Portanto, conseguimos depreender que a disseminação das ideias individualistas,
de isolamento e fragmentação social, têm um objectivo político claro, e neste
caso, no RSI, através de um pequeno exercício poderemos comprovar tal facto e
função: quem maioritariamente opina e divulga informações e factos sobre os
beneficiários deste apoio social são pessoas que não o recebem nem têm
relacionamento directo com alguém que o receba, pondo assim de parte,
qualquer elo de ligação com o real e mantendo, assim, o silenciamento e a
não-imagem dos casos em concreto. Tal facto por si só, demonstra no
dia-a-dia a sua importância no discurso do senso comum.
Sobre esse, tendo em conta a ideia que os espaços de formação de opinião passam
em grande parte pelo ambiente familiar, relacional, laboral e pelos meios de
comunicação, é de fácil compreensão a construção deste fenómeno anti-social que
não é de maneira nenhuma inocente. O objectivo capitalista de fragmentação
atinge-se então, pois será principalmente nas classes trabalhadoras, que o
discurso é mais disseminado entre si.
Após esta distinção de tipos de comunicação que perpetuam o discurso de divisão
social, é importante realçar que, novamente, a excepção cria a regra e a regra
cria o senso comum que se instalou. O discurso dos “malandros” em si só já é
falso: 69% dos titulares são mulheres, portanto, um pormenor exacto seria
referirem-se a “malandras”. Quando se diz que essas pessoas não querem
trabalhar é pertinente introduzir o facto que um terço das pessoas que recebem
esse apoio social trabalham e que mais de metade dos beneficiários são ora
crianças com menos de 18 anos ou trabalhadores aposentados. É também um facto
importante que, no que diz respeito à fiscalização, o RSI é o subsídio com
menor taxa de fraude e que pressupõe o levantamento do sigilo bancário.
Mais do que um complemento solidário, é um complemento
necessário: a principal finalidade do RSI é garantir a dignidade das pessoas
que dele necessitam, ao mesmo tempo, consegue nivelar o mercado de trabalho. Estas
pessoas vivem em condições sociais frágeis e a Direita tem plena consciência
que se não recebessem o RSI estariam disponíveis para trabalhar a qualquer
custo, o que inevitavelmente reduziria o salário dos que actualmente estão
empregados.
Muitas vezes se queixam destes “malandros” que vivem “ à
conta do Orçamento”.Quando ouvimos trabalhadores atacar este rendimento social
de inserção, estão sem dúvida a atacar-se a si próprios, fazendo o jogo dos que
pretendem, com a divisão e o ódio social, aniquilar os direitos que adquiriram.
O papel da esquerda é, então, claro mas não imediato. Claro
porque torna-se óbvia a necessidade do desenvolvimento de uma consciência
diferenciada que surja da crítica à sociedade capitalista e ao individualismo.
Não imediato porque implica a disseminação de informação e luta política e
cultural com as classes burguesas e os media. Este contraponto político e esta
crítica da cultura actual é fundamental para o surgimento de um novo pólo
social que balanceie forças com o discurso hegemónico que aumenta o conflito
social e impulsiona a competição no lugar da cooperação. Só assumindo uma
identidade de contra-corrente do pensamento populista e demagógico que parte de
uma classe política neo-liberal, disseminada pelos media seja por selecção, a
fulanização ou o silenciamento, podemos compreender um espaço capaz de acumular
forças e que tenha capacidade para disputar espaço político concreto na
sociedade com o objectivo de construir solidariedade e destroçar o
individualismo.
Com o fim de RSI e do Salário Mínimo como proposto pela
Direita, abre-se o caminho para que os portugueses trabalhem apenas pelo
suficiente para adquirirem a comida que os manterá a trabalhar no dia seguinte.
Quando somos governados por políticos que atingem os seus cargos sem olhar a
meios, naturalmente que o que eles esperam dos portugueses é que trabalhem a
qualquer custo.
Nuno Moniz e Francisco Silva
[1]
Romano, Vicente, “A Formação da Mentalidade Submissa” (Deriva, 2006)
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