A verdade da crise |
Sábado, 09 Outubro 2010 | |||
A insaciável ambição de poucos prevalece sobre a insaciável fome de muitos. Agora que em Portugal se comemora um século sobre o primeiro programa político que combateu o obscurantismo, podemos verificar que nesta praia europeia, como em todo este Velho Continente, as verdades fáceis e as mentiras demagógicas são ainda enviadas aos ouvidos humanos, que os escutam muitas vezes sem questionar. Primeiro criou-se a crise, fundamentada por todos os erros ideológicos que o Ocidente pensou universalizar, e dela se decidiu fazer vítima a população que, no seu pequeno mundo familiar e do trabalho, empenhou-se diariamente para que essa mesma crise não existisse. Contudo, se colocarmos de parte permanentes divergências de opinião de teor político, encontramos um caminho aberto para problemas concretos e difíceis de negar. Um desses graves problemas, e lembremos a doença de Manuela Ferreira Leite, é o endividamento do país. Segundo Ferreira Leite, e todos os neoliberais e conservadores, o problema do endividamento externo é um problema fundamental e que deve ser urgentemente combatido com medidas e com um programa político que tenha no horizonte a resolução deste grave assunto. O que poucas vezes é dito é que a esquerda concorda que a dívida externa é grave e que deve ser resolvida: a única divergência que existe é no caminho que a esquerda procura levar para essa solução, que em muito se distingue do caminho destrutivo dos neoliberais. É isto que poucas pessoas sabem, é nisto que poucas pessoas sequer pensam. É por isto que se luta nas ruas, mas é isto que a comunicação social e o poder procuram encobrir. A crise que Portugal vive, e todos os países mais pobres da Europa, não tem apenas contornos financeiros: tem uma dimensão social tão ou mais grave do que o aspecto da dívida externa. Acontece que a dívida externa perturba a imagem de Portugal nos mercados internacionais e pode ter efeitos nefastos nos lucros bolsistas e das grandes empresas, que a poucos preocupará mais do que o caos social que o desemprego crescente está a cultivar por todo o país. O que todos ouvimos na comunicação social, e assim foi feita pela direita a última campanha eleitoral, é que o país não tem margem financeira para contornar a crise de um modo diferente de cortar em tudo o que for despesa. O que todos ouvimos é que é preciso trabalhar, e que quem não trabalha não tem direito a inserção social nem ao respeito daqueles que trabalham. Esta situação, na História da Humanidade, sucedeu já nos anos 20 do século passado, e deu origem ao totalitarismo alemão, italiano e português: procurou-se encontrar um bode expiatório para a situação de crise nacional (na Alemanha, os responsáveis pela crise eram os judeus). Em França, os responsáveis pela crise parecem agora ser os ciganos, e em Portugal os responsáveis são os desempregados e aqueles que, por terem um rendimento familiar muito reduzido, necessitam do apoio estatal para a sua mínima qualidade de vida. Os responsáveis não são, aos olhos da classe alta, dos economistas e dos grandes senhores, eles próprios, nem os submarinos nem os carros topo de gama que todos os meses entram nos ministérios portugueses. Os responsáveis pela crise, para a classe alta, não são quem em crise enriquece, mas quem em crise é destruído do ponto de vista social. Tal como na década de 20, a população portuguesa, alarmada pelo que ouve, procura depositar as culpas da situação financeira nos outros, cultiva um excessivo individualismo e egoísmo, assim como uma crescente descrença nas funções sociais do Estado Providência. "Porque quem quer dinheiro trabalha. Porque quem não trabalha não deve enriquecer à custa dos outros." O que o neoliberalismo já conseguiu fazer, mesmo sem conseguir solucionar o problema da dívida externa ou mesmo do défice, foi inculcar estes valores de desrespeito e de intolerância na população portuguesa. O neoliberalismo já conseguiu que o espírito individualista prevalecesse sobre a maioria dos portugueses, desunindo um povo que, na actual situação calamitosa, se deveria unir. Este espírito abriu alas a Hitler e ao genocídio da comunidade judaica. O neoliberalismo e o conservadorismo nunca criaram empregos para as pessoas nem se preocuparam em procurar soluções para um atraso crónico, nem para resolver esse atraso crónico por via da educação ou da esperança, pois o discurso que lhes enche os cofres é o do enfraquecimento das bases da sociedade. Por estas razões e por outras que adiante não serão descuradas, o neoliberalismo é tido, historicamente e do ponto de vista de ciências como a sociologia ou a economia, como errado, e cujas políticas apenas são prosseguidas por interesses de uma minoria poderosa da população que, mesmo em democracia, detém todo o poder dos negócios, da política e da burocracia do Estado. Numa situação de crise financeira e também social, a solução viável nunca é a de cortar quase arbitrariamente no que é despesa da máquina estatal. Um Estado que diminui as suas despesas sociais, e que descura das suas responsabilidades de intervenção económica, é responsável por uma potencial estagnação da sua economia. O corte nas despesas do Estado fará com que as pessoas tenham menos dinheiro para estimular a economia, fará com que algumas empresas não sobrevivam à concorrência estrangeira e fará com que essa morte da produção nacional aumente ainda mais o desemprego, fazendo com que exista ainda menos dinheiro na classe trabalhadora. Se uma pequena empresa deixa de operar e envia para o desemprego os trabalhadores, uma maior empresa beneficiará de um mercado que, com a morte de uma empresa, é agora mais alargado. Isto significa que a crise, como é natural, não é a existência de menos dinheiro, mas sim a pior distribuição dessa riqueza. A título de exemplo, vejamos que os pobres tendem a perder o seu emprego, os seus subsídios e deixam de ter dinheiro para a educação dos filhos e para os medicamentos dos mais idosos, enquanto, no extremo oposto da hierarquia capitalista, os bancos continuam a lucrar milhões todos os dias, lucrando ainda mais desde que a crise se iniciou do que lucravam antes de ela se instalar. Em crise, os ricos ficam mais ricos porque beneficiam de um retrocesso da classe média, e esse retrocesso da classe média produz uma maior quantidade de pobres. Existe, portanto, dinheiro suficiente para resolver a crise e a dívida portuguesa – no entanto, este deve recolher-se em cima, e não em baixo. O Estado evoluiu historicamente de um Estado minimalista, responsável apenas pela soberania nacional, para um Estado social, que acumula funções de soberania, agente económico e agente social. Do ponto de vista moderno e das exigências de uma vida de qualidade, é necessário que o Estado exista em todas estas dimensões, para impedir problemas que no passado ocorreram e que teriam sido evitados com a ajuda de uma entidade central que pudesse actuar. Uma das primeiras soluções encontradas para reduzir a despesa pública foi o corte do subsídio de desemprego e o atentado aos subsídios sociais, sob o argumento já mencionado de que a sociedade não pode sustentar quem não quer trabalhar. Ora, estando o desemprego na casa dos 11% e em crescimento, parece surreal este argumento. De facto, grande parte destes 11% de portugueses em idade activa trabalhariam e contribuiriam para a produção e riqueza nacional se tivessem essa oportunidade de um emprego, a que todos devem ter direito e livre acesso. Com o desemprego cada vez maior e com o poder de compra cada vez mais reduzido, os subsídios que o Estado concede à população são hoje mais necessários do que nunca. Apenas numa fase de expansão económica, em que a riqueza tende a distribuir-se de melhor forma, o corte nos subsídios tem uma razão de ocorrer. Os subsídios não devem ser distribuídos arbitrariamente: devem dirigir-se a quem deles necessita, e numa situação de crise eles são inevitavelmente necessários. Em expansão económica, a qualidade de vida aumenta e muitos subsídios podem e devem ser evitados. Assim sendo, compreendemos que a economia funciona inversamente ao que os neoliberais argumentam: os neoliberais defendem um corte nas despesas numa situação de crise, despesas essas que só podem regressar quando o país tornar a ter dinheiro; mas a verdade económica é que, em crise, deve haver mais investimento estatal, para contrariar essa mesma crise e dar a volta ao ciclo de recessão, e algumas despesas de urgência deixam de ser necessárias numa fase de expansão económica, a qual deve servir para poupar riqueza que permitirá combater uma nova crise quando esta surgir. Esta é a única forma saudável de conviver com o capitalismo: juntando-lhe uma dose coerente de atenção social. Qual deve, então, e resumidamente, ser o caminho para a solução dos problemas do país? Em primeiro lugar, recolher o dinheiro de onde ele existe, através da taxação de produtos de luxo e de impostos progressivos tendencialmente elevados para a classe alta, e aplicar esse dinheiro na criação de emprego, fazendo com que o nosso país não desperdice a sua própria mão-de-obra, sendo esta utilizada na criação de riqueza nacional capaz de tirar Portugal da crise e de devolver a dignidade a todos os estratos sociais. De outra forma, se o Estado não se responsabiliza pelo desemprego criando emprego, não se deve desresponsabilizar a ponto de se considerar no direito de retirar as ajudas aos desempregados que não são os responsáveis, mas as vítimas desta enorme crise. Ou direito ao emprego, ou direito à assistência: as pessoas não podem ver estes dois direitos negados como têm sido nos últimos meses. Por outro lado, em tempos de crise e também em tempos de expansão, o orçamento de Estado deve preocupar-se em evitar qualquer cêntimo de desperdício. A política orçamental deve ser uma política séria contra o despesismo e contra os prémios milionários de subserviência do Estado à elite económica. O erro dos neoliberais e dos conservadores, em suma, é não entenderem nem encarnarem o espírito moderno da ciência. Qualquer ciência principia do entendimento de que nada é aquilo que parece, e que a primeira impressão sobre uma questão não é a forma correcta de a encarar. Durante séculos ou milénios, pensou-se que o Sol se movia em redor da Terra porque, à primeira vista, a Terra é estática e o Sol move-se em redor do nosso planeta, produzindo os dias e as noites. Apenas com um olhar científico de constante inquirição e dúvida em relação ao que os olhos sugerem, se percebeu que a verdade era contrária àquela que tendencialmente pensamos quando olhamos sem atenção. A economia e a política são ciências sociais, porque se debruçam sobre problemas sociais e não da natureza, mas partilham com as restantes ciências os seus princípios de constante interrogação. Existindo crise e dívida do Estado, à primeira vista estas resolver-se-iam com a diminuição dos gastos desse mesmo Estado, para que a dívida não aumentasse e para que o dinheiro, em vez de ser gasto, fosse acumulado para pagar a dívida. No entanto, a longa experiência humana provou já que a solução para esta questão é o investimento, pois o investimento (na criação de emprego e na qualificação dos portugueses para que a produtividade aumente) produzirá riqueza que não seria produzida sem o investimento do Estado. O caminho para acumular dinheiro não é poupar, mas sim investir para que o dinheiro se acumule. Um problema não pode nunca ser resolvido a jusante, mas sim a montante. João Fernandes
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A Comuna 33 e 34
A Comuna 34 (II semestre 2015) "Luta social e crise política no Brasil" | Editorial | ISSUU | PDF
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