Na Paz dos ODM |
Terça, 21 Setembro 2010 | |||
(…) em grande medida foram conflitos armados que originaram as necessidades explanadas na Declaração do Milénio, e são também estes alguns dos obstáculos à sua concretização.
Artigo de Ana Ferreira Na mesma semana em que se comemora o Dia Internacional da Paz, decorre a Cimeira em que será avaliado o progresso dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM). Não é despicienda a simultaneidade destes eventos. Afinal, em grande medida foram conflitos armados que originaram as necessidades explanadas na Declaração do Milénio, e são também estes alguns dos obstáculos à sua concretização. Numa era de crianças soldado, devastadas na infância para um conflito interno, e de busca da destruição da honra do inimigo como força vencedora, quebram-se as regras de ius in bello e aumenta a miséria humana. Falar de paz é ainda falar de segurança humana, falar de desenvolvimento é ainda falar de dignidade. Tomemos Angola como exemplo. País de grande riqueza com inúmeros recursos naturais, com frágeis infra-estruturas após três décadas de guerra civil, um povo que desconhece o significado de Direitos Humanos em consequência de vários séculos de repressão. Angola é um dos países que mais falhou nos índices de desenvolvimento, ocupando a quinquagésima quinta posição no índice Failed States Index, e o 143º lugar, de entre 182 países, no Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD. Angola vive ainda um período de peace building, com uma estrutura democrática perto de nula; com deslocações de população que fugira à guerra e finalmente retorna à terra; com infra-estruturas dizimadas. Sem dúvida Angola tem investido no desenvolvimento, mas tantas vezes em desrespeito de todos os padrões internacionais de Direitos Humanos. Assim se permite o desalojamento forçado de milhões de pessoas em Luanda, numa disputa por valiosos terrenos urbanos, com uso excessivo de força policial. Assim se permite o recurso à tortura e a detenções ilegais que não chegam a ser judicialmente investigadas, entraves à construção de um Estado de Direito, essencial para a manutenção da paz. Facto: A 1 de Abril de 2010 quatro membros da Comissão do Manifesto Jurídico Sociológico de Luanda Tchokwe foram alegadamente detidos e espancados por apresentarem um manifesto na esquadra policial de Cuango, Luanda Norte. Facto: Polícias, soldados, agentes municipais e seguranças privados desalojaram mais de 10000 famílias desde 2001, sem que lhes fosse concedida habitação provisória ou qualquer compensação pecuniária; Facto: Em Angola têm sido lançados vários programas de promoção de habitabilidade, de que é exemplo o Programa Angola Jovem, o qual concede casas a baixo preço a jovens de rendimento médio; Facto: Apesar de o número de desalojamentos forçados ter diminuído desde 2006, em Julho de 2009 mais 15000 pessoas ficaram sem casa, nos bairros de Iraque e Bagdad, nos arredores de Luanda; Facto: Angola tem uma taxa de mortalidade materna superior à de Moçambique, país mais pobre em termos de recursos naturais; Facto: A falta de recursos de um país não é a causa única e directa da mortalidade. Facto: A devastação que a guerra trouxe não pode ser a única justificação para o que é evidentemente causado por má gestão e elevadíssima corrupção.1 Em última análise é de segurança humana que a população angolana mais precisa. De uma perspectiva ampla, segurança humana é a garantia de condições de vida longe de ameaças crónicas, como a fome, e de mudanças súbitas da vida quotidiana, como o genocídio2. Sob esta mesma óptica, são elementos vitais ao desenvolvimento humano e à manutenção de uma paz positiva a segurança alimentar ou sanitária, elementos que ao ser ameaçados se propagam aos restantes caindo num ciclo de instabilidade conducente a conflitos iminentes. Os oito grandes objectivos deste milénio são concretizações deste conceito, são veículos de devir, são compromissos que muitos países, como Angola, estão aquém de alcançar. Estes objectivos são também sustentados pelos Direitos Humanos, visando a sua implementação, por no incumprimento destes direitos residir a causa estrutural da pobreza. Os ODM são a materialização do Direito ao Desenvolvimento, no quadro dos Direitos Humanos, e este é garantia de paz interna. O problema que hoje fulcralmente se coloca não é o da ausência de know-how, as soluções para muitos destes problemas são conhecidas. A ajuda internacional desinteressada está longe de ser uma realidade, e ao invés de se promover a capacitação das populações mais carentes, criam-se dependências de estruturas que deveriam ser desenvolvidas no local e pela população local. É essa a grande virtualidade dos ODM, promover a capacitação e auto-suficiência das populações. Sendo a Declaração do Milénio desprovida de carácter vinculativo, é a ligação dos ODM aos Direitos Humanos que permite a responsabilização dos Estados que incumprem. É essencial responsabilizar os Estados, e para tal urge consciencializar e ouvir as Sociedades Civis e Comunidades Locais, responsabilizando-as também pela sua parte. Uma sociedade civil forte pode ser a garantia de segurança, de estabilidade política, de diminuição da corrupção que, muitas das vezes, a comunidade internacional não consegue impor de outra forma num país. Por mais genuína e desinteressada que seja a ajuda, é necessário assegurar que os projectos aplicados nos países que recebem ajuda vão realmente ao encontro das necessidades das populações e respeitam as características culturais destas. Esta semana reúnem-se os grandes chefes de Estado na encantadora e cosmopolita Nova Iorque, no grande centro financeiro mundial, para discutir como assegurar que todas as crianças têm acesso à educação e à saúde, que a sociedade civil conhece os seus direitos, os povos se unem para combater a pobreza, do estrangeiro chegam os donativos e no interior desenvolvem-se estruturas. E no entanto parece que não se questiona a verdadeira causa desta falta de estrutura, desta pobreza, desta corrupção. Volto a Angola lembrando uma guerra que destruiu a estrutura social de um povo inteiro, uma guerra que não nasceu da revolta de uma juventude economicamente marginalizada, antes de uma disputa de poder concentrado em dois grandes líderes, uma luta gananciosa por poder.3 Dessa guerra resultou uma população miserável, sem acesso aos bens mais essenciais, desenraizada, desesperada para escapar a uma nova guerra, calada pelo seu próprio governo que concentra em si uma riqueza exponencial. É a corrupção e o Estado Polícia instaurados, sim, mas é também a passividade da comunidade internacional que alimenta este status quo por não estar disposto a pressionar se isso implicar o sacrifício do seu conforto e o desvio dos ditames da sua agenda política. A guerra que devastou toda uma população foi instigada por um mundo dividido em blocos de leste e ocidente, foi parcialmente auxiliada por quem hoje se arroga de vender moralidade. A comunidade internacional tem de se envolver verdadeiramente para tornar possível a construção de uma sociedade civil com capacidade para falar sobre o que hoje não sabe ter direito. A comunidade internacional tem de pensar que é para construir condomínios de luxo para uma pequena minoria de angolanos e estrangeiros que são desalojadas milhares de pessoas, vítimas de uma guerra, de um pós-guerra, e de uma ausência de esperança. Notas: 1 in Relatório Anual da Amnistia Internacional 2010.
2 in OLIVEIRA, A. B., Segurança Humana: um desafio para a política internacional do Século XXI.
3 in McIntyre, E., Invisible Stakeholders: Children and War in Africa.
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A Comuna 33 e 34
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