Se tivéssemos de estudar todas as leis não teríamos tempo de transgredi-las.
Goethe.
Artigo de Maria Orlanda Pinassi
Por muito tempo, partidários da esquerda e da direita no Brasil nutriram a expectativa de que a superação do nosso atraso colonial e a conseqüente explosão da nossa potencialidade burguesa consolidassem o estatuto da democracia e da cidadania no país com o intuito de suprimir crônicos problemas sociais, entre os quais, a fome, a desnutrição, analfabetismo, mortalidade infantil figuraram sempre em primeiro plano. Na maturidade do desenvolvimento, atingiríamos as alturas da emancipação política que, liberando-se dos constrangimentos da economia, assumiria a tarefa de “corrigir os desvios da história” mediante a esfera dos direitos em amplo espectro.
O nosso capitalismo desencantou finalmente e, sob comando neoliberal, apresenta alguns dos melhores desempenhos econômicos do sistema. De fato, o capital tem pouco a lamentar e muito a comemorar por aqui. Exemplos disso são os estratosféricos lucros bancários e as intensas atividades de mineração e energia. É impressionante também o sucesso do agronegócio e a naturalidade com que este setor determina políticas de ocupação e uso da terra – seja ela agricultável, de florestas e outras tantas de proteção ambiental – para instalação de pastos e monocultivo de cana, soja, celulose. Interessante como isso vem “resolvendo” o velho problema dos latifúndios improdutivos no Brasil sem precisar recorrer às incômodas políticas de reforma agrária. Mais interessante ainda é perceber que, sob a batuta das transnacionais na regência da burguesia interna e do Estado, os setores mais fundamentais da economia redefinem as condições da colonialidade brasileira: “vocação agrícola” e exportação de produtos primários.
Pois, diante da ganância sem limites do capital e do pesadíssimo custo social que a lógica atual do seu funcionamento impõe, é preciso reconhecer que o país sedimenta o seu desenvolvimento capitalista e a maioridade da sua política democrático-burguesa pelas mãos do mais eficiente dos políticos da história brasileira na arte da conciliar extremos. Garante a reprodução dos altíssimos níveis de concentração da riqueza socialmente produzida, administrando as conseqüências insolventes do sistema - desemprego estrutural, perda progressiva de direitos trabalhistas, proliferação de trabalhos degradantes, dentre os quais recrudesce a exploração do trabalho infantil e de novas formas de escravização da força-de-trabalho – através de políticas públicas que precisam distribuir cada vez mais cotas e rendas (de fato mínimas) para a população pobre que, em termos reais, não para de crescer.
Neste contexto de profundas contradições internas, as mulheres vêm assumindo papéis de crescente relevância nos planos da política institucional, parlamentar, extra-parlamentar. Seu protagonismo é inegável, mas a generalidade da sua condição feminina termina onde se define a sua condição de classe. Assumem, portanto, campos ideológicos radicalmente distintos estabelecidos entre a margem mais ou menos larga das escolhas legais e afirmativas da ordem e a contestação legítima de ações políticas autênticas visando o questionamento e a negação da ordem.
A legalidade
Comecemos pelas eleições majoritárias que se aproximam. A campanha, inédita, vem encabeçada por uma mulher, a herdeira do lulismo, “mãe do PAC” que, se eleita for, deverá reproduzir em escala ampliada a receita do desenvolvimentismo aludido.
Neste mesmo clima de possível liderança feminina no mais alto cargo político do país, o TSE divulgou recentemente que as mulheres são hoje a maioria da população votante representando 51,8% - 70,3 milhões - do total de votos válidos. O contingente ensejou uma mini-reforma eleitoral (Lei 12034/2010) a vigorar já nessas próximas eleições. Assim, seguindo a mesma orientação das cotas raciais, a lei obriga os partidos políticos a 1) preencherem 30% das vagas com candidaturas femininas; 2) reservarem 5% da receita para programas destinados às mulheres; e 3) definirem, ao menos, 10% do tempo de rádio e TV para suas questões específicas(1).
Há quem considere o quadro um progresso das condições de representação democrática nas relações e espaços de poder, da igualdade política entre mulheres e homens. De fato, os números parecem mesmo confirmar o amadurecimento desse princípio basilar da sociabilidade fundada na revolução burguesa. Questionável, porém, é a qualidade efetiva deste avanço, já que a presença maior da mulher no chamado exercício da cidadania não decorre exatamente de suas próprias escolhas, mas do excedente tendencial da população feminina em relação à masculina no Brasil – que, em 2000, atingiu a casa dos 2,5 milhões, segundo relatório do IBGE de 30/08/2004. Obviamente que a arcaica obrigatoriedade do voto no Brasil dá contribuição importante para isso.
As coisas se tornam ainda mais complexas se observarmos que aquela igualdade possível no âmbito da política institucional-parlamentar não encontra qualquer fundamento na realidade concreta dos indivíduos marcada, como vimos, por profundas desigualdades sociais. A pobreza, por exemplo, que assola a América Latina afeta, sobretudo crianças e mulheres, ou seja, “é 1,7 vezes mais alta entre menores de 15 anos e 1,15 vezes maior entre mulheres” (Panorama Social da AL 2009 – CEPAL).
O Brasil tem, segundo o PNUD, o 3º pior índice de desigualdade no mundo e, apesar do aumento dos gastos sociais nos últimos 10 anos, registra uma pífia mobilidade social e educacional. Nesse quadro, 58% da população são muito pobres, contingente composto predominantemente por mulheres, indígenas e afrodescendentes.
Ora, as causas da pobreza feminina decorrem necessariamente da concreta relação entre capital, trabalho e gênero, pois nas últimas décadas, em função da reestruturação produtiva e do desemprego massivo da força-de-trabalho masculina, ocorre uma intensificação do trabalho feminino em ocupações quase sempre precárias e superexploradas. Juntamente com a exploração no espaço da produção, permanecem intactas as condições de exploração no espaço de reprodução privada, na medida em que seguem cumprindo todas as atribuições domésticas que constituem a sua dupla jornada de trabalho.
Não surpreende que, em situação de crise, como as que vêm afetando a dinâmica do sistema em escala planetária, as mulheres sejam ainda mais atingidas do que os homens pelo desemprego. Dados do IPEA demonstram que, em 2008, o emprego entre elas caiu 3,1% enquanto que entre os homens a queda foi de 1,6%.
Compreende-se, por isso, que as políticas sociais, implementadas de modo tão competente – e despolitizado – pelo governo, funcionem como pronto atendimento ao que os primeiros ideólogos do neoliberalismo já previam como séria ameaça à reprodução da ordem de modo relativamente controlado. Para eles, o “alívio da pobreza é uma exigência tanto dos princípios éticos básicos do Ocidente quanto do simples interesse próprio. A longo prazo, é pouco provável um mundo bem ordenado se uma grande afluência de riqueza de um lado coexiste com a pobreza esmagadora de outro, ao mesmo tempo em que surge um mundo de comunicações, relações mútuas e interdependência”(2).
Não é fortuito, portanto, que o governo dê prioridade às mulheres no cadastramento do Programa Bolsa Família que representam 53% dos benefícios concedidos.
Parece que essa obra de engenharia política é fazer da miséria virtude, agradando os gerentes do capital internacional e extraindo dividendos eleitorais internos. E, sob este aspecto, não restam dúvidas de que as condições atuais de governabilidade no Brasil funcionam em absoluta sintonia com a lógica desigual do sistema de capital. Ou seja, a enxurrada de instituições governamentais/não-governamentais de assistência ao pobre, à mulher, ao negro, ao índio, ao homossexual, à criança, ao idoso, ao meio ambiente, representa as abstrações de uma vontade política mais indisposta do que nunca a subtrair as causas dos problemas que se originam exatamente no crescimento que empreende com tanta obstinação.(3) A regra, portanto, é institucionalizar a pobreza e exercer “controle democrático” sobre os pobres – leia-se classe trabalhadora que, para o bem e para o mal, tende a um acentuado processo de feminização.(4)
A legitimidade
Entramos aqui numa outra dimensão da política, desta vez como atributo extra-parlamentar e instrumento legítimo da luta de classes. Para isso, partimos da premissa de que a questão feminina é fundante para a transição socialista até por que
(...) dadas as condições estabelecidas de hierarquia e dominação, a causa histórica da emancipação das mulheres não pode ser atingida sem se afirmar a demanda pela igualdade verdadeira que desafia diretamente a autoridade do capital, prevalecente no “macrocosmo” abrangente da sociedade e igualmente no “microcosmo” da família nuclear.(5)
Para compreender isso basta acompanhar as manifestações que, desde 2006, as mulheres do MST efetuam em 8 de março, juntamente com mulheres de outros movimentos da Via Campesina. A cada ano, desde então, elas partem de suas lutas específicas – de gênero - para afrontar o capital mediante ações, na Aracruz, Stora Enzo, Votorantim, Monsanto etc., que não são somente reivindicativas; são corajosas e realistas dramatizações da luta pela reforma agrária, em defesa da vida e da soberania alimentar, cuja necessidade é mais atual do que nunca. Trata-se de uma práxis de denúncia das nefastas conseqüências sociais e ambientais impostas, em todo território nacional, pelas transnacionais do veneno.
Mas, em todos esses momentos também, outra questão que surge e que nos parece particularmente problemática é que, muito embora a supressão da opressão das mulheres seja vital à construção de uma alternativa societária, essa afirmação está muito aquém de constituir unanimidade no interior do MST.
A atuação mais efetiva dos homens do movimento tende a voltar-se à realização objetiva das questões econômicas, arrefecendo com a conquista da terra e a formação dos assentamentos. A positividade desta conquista para o movimento como um todo é obviamente incontestável, significando a objetivação exitosa da sua luta pela reforma agrária. No entanto, essa mesma conquista pode também se converter numa regressividade para todo o movimento – tendo em vista a retomada interna de ameaçadoras relações hierarquicamente estruturadas.
São as mulheres que acusam essa possível regressividade já que, depois de viverem por anos sob a lona preta dos acampamentos, desempenhando as mesmas funções dos homens e participando de uma significante quebra da divisão tradicional do trabalho familiar - experimentam no processo de assentamento um indesejado retorno à antiga dominação patriarcal. Neste momento, muitas delas, mesmo depois de assentadas, tomam a decisão de não aceitar o retrocesso (6), permanecendo na luta, seja pelo reconhecimento do seu papel fundamental em todos os momentos de afirmação do movimento, seja na atuação solidária que desempenham junto das famílias que continuam acampadas.
Conforme as mulheres, a efervescência revolucionária do MST se encontra, na verdade, no processo de acampamento e, para elas ainda, o assentamento não é o fim da linha, mas mediação para algo novo. Por isso mesmo, suas ações internas e externas vêm impondo a necessária autocrítica permanente ao movimento como um todo, visando impedir seu enregelamento em torno de posturas defensivas, tendentes à institucionalização.
Sua luta interna, portanto, não é contra os homens, mas contra as deformações patriarcais herdadas de uma sociabilidade que antecede a formação dos movimentos e que todos, homens e mulheres, carreiam e reproduzem no seu interior, algo que só pode beneficiar o capital.
O quadro descreve uma situação que está ainda muito aquém de ser conclusiva, mas a práxis dessas mulheres evidencia, desde o princípio, o elevado grau da sua consciência de classe que, a partir da dimensão de sua própria luta, potencializa o que nela possa haver de específico. Mas, vão bem além ao trazerem luz às contradições que habitam a relação atual do capital com o mundo do trabalho. Nesses termos, suas ações ultrapassam a luta pela igualdade formal que habita a esfera do direito burguês expondo para que o mundo todo testemunhe a tragédia humana e ambiental que o atual padrão de acumulação impõe ao Brasil.
Apesar de toda criminalização e repressão (7) que vêm sofrendo, essas mulheres estão reabrindo a história e reencontrando o verdadeiro espírito da emancipação de que falava Marx ao dar um salto ontológico em direção à igualdade substantiva e à emancipação não somente da política (8), não somente delas próprias, mas de toda a humanidade.
Maria Orlanda Pinassi é professora de Sociologia, UNESP Araraquara, Autora do livro Da miséria ideológica à crise do capital – Uma reconciliação histórica. (SP: Boitempo, 2009).
Notas:
1) Apesar disso, o número de mulheres disputando o pleito não ultrapassou tímidos 21% do total de candidatos.
2) Richard Cooper, Karl Kaiser e Masataka Kosaka. Toward a renovated International System. Apud Noam Chomsky et. al. A Trilateral. Nova fase do capitalismo mundial. RJ: Vozes, 1979, p. 95.
3) Para Marx, “o princípio da política é a vontade. Quanto mais (...) perfeito é o intelecto político, tanto mais ele crê da onipotência da vontade, tanto mais é cego frente aos limites naturais e espirituais da vontade e, consequentemente, tanto mais é incapaz de descobrir a fonte dos males sociais”. Glosas críticas marginais ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano”. SP: Expressão Popular, 2010, p. 62.
4) Ver a respeito Claudia Mazzei Nogueira. A feminização no mundo do trabalho. Entre a emancipação e a precarização. SP: Autores Associados, 2004.
5) István Mészáros. Para além do capital, p. 271.
6) Contraditoriamente, é comum a separação dos casais nesta fase do processo de conquista da terra, por iniciativa da mulher.
7) Veja-se, por exemplo, a truculência com que, em suas manifestações pelo Dia Internacional da Mulher, as mulheres e seus filhos são tratados pelo aparato policial em todos os estados da nação.
8) “A emancipação política expressa pela cidadania e pela democracia, é, sem dúvida, uma forma de liberdade superior à liberdade existente na sociedade feudal, mas, à medida que deixa intactas as raízes da desigualdade social, não deixa de ser ainda uma liberdade essencialmente limitada, uma forma de escravidão. A inclusão dos trabalhadores na comunidade política não ataca seus problemas fundamentais, pois eles podem ser cidadãos sem deixarem de ser trabalhadores (assalariados), mas não podem ser plenamente livres sem deixarem de ser trabalhadores (assalariados).” Ivo Tonet. Prefácio às Glosas críticas ... (p. 27).
Publicado na Revista Caros Amigos
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