A Longa Marcha das Mulheres pelo fim da violência de género Versão para impressão
Terça, 29 Novembro 2011

submissaNão somos submissas, nem vítimas, somos mulheres que se querem empoderadas, livres, seguras. Não aceitamos a continuação de uma sociedade machista, dominadora, patriarcal, queremos uma sociedade com igualdade de género e sem violência e até a alcançarmos marcharemos, lutaremos e resistiremos. Como ouvi certa vez uma companheira dizer “ As feministas são corredoras de fundo”, somos resistentes e não capitularemos.

Artigo de Nádia Cantanhede

submissa

Este cuerpo es mio, no se toca, no se viola, no se mata” é a declaração de uma mulher num poster numa manifestação. Desconheço que manifestação e em que zona do globo ocorreu, ou até quem é esta mulher que eleva a sua voz no espaço público exigindo o direito ao seu próprio corpo. Na verdade, pouco importa a zona, o país, a nacionalidade desta mulher. A sua exigência é uma reivindicação global e uma reivindicação de todas as mulheres por todo o mundo.

Comecemos assim a reflectir sobre a violência contra as mulheres através deste direito elementar, primário, imprescindível: o direito ao corpo, ao seu corpo.

A ciência já nos fez compreender que contrariamente ao que antes se pensava, somos seres inteiros, um só e não estamos fragmentados em corpo e alma. Mente e corpo é uma divisão fictícia, um embuste. Somos unas e o domínio patriarcal sobre as mulheres não é sobre o corpo apenas, é sobre as mulheres como um todo, estando, nesse todo, um mundo que engloba todas as vertentes da vida privada, social e histórica das mulheres.

Reflectir sobre a violência exercida contra as mulheres nunca é uma tarefa fácil porque a violência na plenitude do seu conceito encontra, nas mulheres, toda a sua forma de expressão.

As sociedades patriarcais e machistas, que são todas as sociedades mundiais (podendo ter uma maior ou menor expressão) caracterizam-se por um domínio que se traduz pela tentativa , muitas vezes bem conseguida, da apropriação do corpo feminino, da história das mulheres e do seu valor e expressão social.

A propriedade masculina sobre o corpo feminino dita um total poder patriarcal sobre o mesmo, poder que é violento na sua plenitude e destrutivo em muitos casos. Por todo o mundo milhares de mulheres são mortas, violadas, trocadas e vendidas para exploração sexual ou trabalhos forçados, mutiladas, apedrejadas, violentadas, privadas da sua sexualidade, da sua imagem corporal. Sobre o corpo das mulheres são ditadas regras e limitações nas quais as mulheres perdem todo o seu direito à liberdade, à integridade, à escolha. A opressão corporal é por excelência, uma opressão identitária e a mais profunda violência que pode ser exercida sobre o ser humano.

Sem o direito sobre o seu próprio corpo, as mulheres perdem também o direito a si próprias e sem esse direito elementar perde-se, por conseguinte, todo o direito social, político e histórico. Não ter poder de escolha sobre si e sobre a sua vida é não ter um direito pleno à existência.

São as vozes do patriarcado as mais opressoras vozes das civilizações humanas, mais opressoras e mais persistentes. Destruir esta opressão é uma das tarefas mais árduas e um dos maiores desafios dos nossos dias.

Desvalorizadas e diminuídas, as mulheres são mais facilmente dominadas e o seu lugar empurrado para um outro plano.

À violência e propriedade sobre o corpo juntam-se outros tipos de violência que necessariamente daqui advêm.

Mas não podemos falar de violência sobre as mulheres sem mencionar a violência cultural. Por todo o mundo existem culturas que se caracterizam na sua génese por práticas de violência e domínio sobre o corpo e a vida das mulheres. Refiro-me por exemplo, às mortes por lapidação e asfixia de entre outros métodos, todos eles de uma brutalidade inominável que observamos nos chamados crimes de honra, às mutilações genitais femininas, aos casamentos forçados de mulheres e meninas, aos abortos selectivos de fetos femininos, à privação das raparigas da escolaridade. Sob pretexto algum e muito menos sob o pretexto de se tratar de uma prática cultural devemos abrir excepções a práticas de violência sobre seres humanos. Não nos poderemos esquecer que sendo as sociedades patriarcais, essas culturas foram desenvolvidas por homens e manifestam formas de domínio ancestrais e a perpetuação das práticas culturais é a perpetuação da violência. Seja em que parte do mundo for esse tipo de violência como todos os tipos de violência diz-nos respeito. Não podemos fechar os olhos e assobiar para o ar justificando que em dada cultura é assim e devemos respeitar Devemos respeito a todas as mulheres sem excepção e a elas em primeiro lugar que a culturas, sociedades, instituições e sistemas. O que é mais importante afinal, as mulheres, seres humanos, ou a cultura? Esta questão cultural deve ser pensada em profundidade até porque estes tipos de crimes se desenvolvem em praticamente todo o mundo e mesmo aqui, ao nosso lado, em toda a Europa, sendo muitas vezes tomada a posição de uma não intervenção separando assim as mulheres em duas categorias: as que devem ser protegidas nos seus direitos cívicos e humanos, as europeias e ocidentais (e mesmo assim, mal protegidas, como sabemos) e as outras, as provenientes de outras culturas sendo que essas podem até ser mortas sob o pretexto de riqueza cultural.

Todas as mulheres são mulheres na sua plenitude, não existem mulheres de primeira e de segunda categoria nem existem humanos de primeira e segunda categoria. Poderá ser difícil de assimilar mas havemos de lá chegar um dia.

É a existência desta categorização que dita que na actualidade em países que se dizem desenvolvidos e protagonistas em direitos humanos observamos fenómenos como a diferença escandalosa nos salários com mulheres a receber menos 20% que os homens graças à sua diferença cromossómica, para não falar na linguagem extremamente masculinizada onde o feminino está incluído como apêndice, no papel ainda exclusivo de cuidados e assistência à família por parte das mulheres, entre outras situações intoleráveis.

As mulheres foram apagadas da história das civilizações humanas, não existem registos senão escassos e de difícil acesso às lutas e conquistas femininas. Esconder a história das mulheres é diminui-las e transmitir uma percepção de impotência e fatalidade no feminino. Saber essa história é um agente transformador e de empoderamento feminino que teria um papel preponderante no fim da opressão. A ocultação das mulheres enquanto protagonistas da história é também uma forma de violência.

Levantamo-nos contra todos estes tipos de violência exercida sobre as mulheres de todo o mundo reforçando a nossa solidariedade e a necessidade de uma união internacional para terminar com este flagelo milenar que atinge o género feminino.

Não somos submissas, nem vítimas, somos mulheres que se querem empoderadas, livres, seguras. Não aceitamos a continuação de uma sociedade machista, dominadora, patriarcal, queremos uma sociedade com igualdade de género e sem violência e até a alcançarmos marcharemos, lutaremos e resistiremos. Como ouvi certa vez uma companheira dizer “ As feministas são corredoras de fundo”, somos resistentes e não capitularemos. A longa marcha das mulheres continua e continuará até que a violência acabe e até que todas nós estejamos livres do domínio patriarcal e empoderadas.

Nádia Cantanhede

 

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