A atinência do neo-realismo e a quebra da douta literatura em Portugal |
Quarta, 22 Fevereiro 2012 | |||
Ao longo dos anos, o realismo sofreu diversas críticas por ser, em grande parte, e apesar das suas descrições minuciosas de espaços físicos, incapaz de reproduzir os assuntos económicos e a interacção entre os pequenos mundos abrangidos e descritos nos romances e os mundos maiores em que eles se inseriam. A recriação do realismo, trazendo as preocupações quotidianas e deixando a perspectiva conservadora da literatura pela literatura, resultou numa corrente artística que, a partir de meados do século XX, marcou vincadamente gerações e apresentou uma ideologia patentemente marxista. Embora esta visão da literatura pela literatura muito longe esteja de merecer ser vilipendiada, a vanguarda marxista tem-na remetido para segundo plano e procurado uma literatura interventiva, expressiva das lutas de classes e comprometida com a mudança social. Esta quebra com a literatura pela literatura terá talvez atingido o seu cume em termos de reconhecimento com George Orwell (1903-1950), de seu nome Eric Arthur Blair, para quem a intenção de mudar o mundo fazia parte da natureza de quem escreve. De acordo com ele, negá-la é também uma posição políca: “The opinion that art should have nothing to do with politics is itself a political attitude.” O autor, utilizando uma expressão de Gensane, “ne fit pas de littérature politique mais il fit politiquement de la littérature”, o que exige uma leitura consciente de quem o lê, comprometida com o peso de cada palavra, crítica e não inocente, ainda que Orwell entendesse por “político” um modo de persuadir: “Political purpose. — Using the word ‘political’ in the widest possible sense. Desire to push the world in a certain direction, to alter other peoples’ idea of the kind of society that they should strive after.” A literatura neo-realista em Portugal foi obviamente resgatar características do realismo e do naturalismo – bem mais do realismo do que do naturalismo, diria -, mas desenvolveu-se a partir deles de forma a criar um estilo de fácil identificação autoral. Alves Redol (1911-1969) e Manuel da Fonseca (1911-1993), cujos centenários são agora lembrados, são dois dos nomes incontornáveis desta corrente literária em Portugal, em muito abafando o nome de Soeiro Pereira Gomes (1909-1949), militante comunista que não se estendeu para a posterioridade da mesma forma que os dois primeiros, eternamente falados pela lembrança. Talvez tenha sido pela quebra da literatura pela literatura que mencionei que a literatura de Alves Redol foi muito criticada. Meros anos após a literatura portuguesa ter sentido o bálsamo dos livros palavrosos de Eça de Queirós (1945-1900), escritor de sintaxe aprimorada, variação lexical, requintada semântica e retórica eloquente, e enquanto ainda o mundo vivia o temor assombroso, delicioso, das obras de Balzac (1799-1850) e de Flaubert (1821-1880), realistas franceses, surgiu-nos em Portugal um escritor vilafranquense, de seu nome Alves Redol, que desde cedo se mostrou apto a mudar as noções da literatura tal como nos meios mais eruditos era conhecida. Este ímpeto violento nas noções estéticas literárias, tantas vezes criticado, muito mais tarde celebrado, deveu-se à menção de personagens, temas e situações que não eram expectáveis na literatura, tão tida como privilégio das classes instruídas. A linguagem simples de Redol, contudo, que se limitava a descrever o que acontecia entre o povo, que usava as palavras do povo e que reproduzia os diálogos do povo, veio altercar o espólio literário do século XX e impor-se no panorama cultural de então. Se, por um lado, podemos ter a certeza de que estas afirmações chocariam e irritariam Harold Bloom (1930-), por outro, não podemos jamais esquecer-nos de que Redol jamais foi dado a pretensões. Aliás, ele mesmo diz na epígrafe de Gaibéus (1939), o seu primeiro romance, que inaugura o neo-realismo em Portugal, e certamente o que de forma mais evidente o catapultou para a fama, que o “romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem”. Esta visão da literatura como meio de propagação de mensagem, ao invés da concentração na beleza fonética das palavras ou na perfeição exímia linguística portentosa - passe o pleonasmo, aqui como enfatização ornamental -, tem irritado muitos críticos literários, mas Redol jamais escondeu que o seu principal intento era denunciar as desigualdades sociais e que as palavras eram um mero veículo que o possibilitava. No entanto, a visão da literatura de Redol não era tão empírica quanto possa parecer. Ainda que possa assemelhar-se muito menos fogosa e passional que a que Gabriel García Márquez descreveu no seu Vivir para contarla (2002), o certo é que Redol também não se absteve de descrever o prazer que retirava da escrita, também na epígrafe de Gaibéus: “Se algum dia alguém me perguntasse que aprendizagem deveria um jovem fazer para chegar a romancista, se o ofício se ensinasse, eu diria que enquanto a vida lhe não desse todas as voltas e reviravoltas, amores, sofrimentos, repúdios, sonhos, frustrações, equívocos, etc., etc., (...) seria avisado que o mandasse ensinar a sapateiro, não para saber deitar tombas e meias solas, porque nem para tanto ele usufruirá, às vezes, com a escrita, mas para que ganhasse o hábito de padecer bem, amarrado ao assunto durante largos anos, antes que provasse o paladar gostoso de algumas horas de pleno prazer.” Manuel da Fonseca, autor de obras como Aldeia Nova (1942), Cerromaior (1943), O Fogo e as Cinzas (1953) e Seara de Vento (1958), foi outro dos grandes vultos destacados do neo-realismo literário português. Membro do Partido Comunista Português, os seus relatos ímpares da dura realidade laboral alentejana ficaram para a posterioridade, através do cunho político que o neo-realismo teve, da forma como foi exercido e da forma patente como se pôs e expôs contra o totalitarismo, funcionando como uma corrente transmissora de consciencialização. Este cunho político deu, por isso, um novo papel a quem escrevia, que tendia para a transformação da realidade. A literatura de Manuel da Fonseca foi evoluindo para um regionalismo crescente, muito descritiva do Alentejo que o autor via, muito descritiva das pessoas e das misérias que as assolavam. Estas descrições fiéis do ambiente circundante concederam às obras de Manuel da Fonseca um cariz autobiográfico, que se estendia até à interpenetração entre ficção e realidade. Talvez possamos dizer que essa interpenetração era também visível entre poesia e prosa, contínuas e intertextuais no autor. O cariz contestatário da literatura que Fonseca criava fez com que a censura jamais deixasse de o seguir com relativa proximidade. O mesmo acontecia, de resto, com a maioria dos escritores neo-realistas, já que o seu cunho político não era deturpado ou escondido. Reactivando mecanismos de representação narrativa, o neo-realismo, descrevendo as vivências de operários e patrões, camponeses e senhores, evidenciando as suas discrepâncias, principalmente materiais, usando a consciência de classe e as lutas entre classes, foi acutilante no seu cariz transformador, servindo de ferramenta para muitas e muitos marxistas, testemunhando as profundezas hórridas das privações materiais, não de uma forma meramente histórica, mas de uma forma literária, o que o torna mais tocante e mais portentoso, como toda a literatura deve ser. É por ser atinente que é hoje lembrado por inúmeras/os leitoras/es, historiadoras/es e marxistas e que é hoje lembrado neste espaço, sendo intemporal a marca que deixou no tempo, destruindo barreiras a marca que deixou no espaço. “Et tout le rest est littérature” (Verlaine). Ana Bárbara Pedrosa
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